Por Maria Inês Nassif, publicado em Jornal GGN –
Como vítima de atentado, candidato prejudica Alckmin. O eleitorado já está polarizado e vão para o segundo turno um representante do golpe e outro das forças progressistas
O eleitorado do PT vive um clima de insegurança coletivo, acirrado após o suposto atentado contra o candidato da extrema-direita à Presidência, Jair Bolsonaro. Tem algumas razões para isso. A faca passou, fácil, por uma inacreditavelmente frouxa segurança do candidato do PSL (20 agentes da PF teoricamente estariam no palco dos acontecimentos) até chegar à vítima e produzir um estrago considerável. Com isso, o candidato que prega a violência foi vítima de seu veneno e, ironia das ironias, ganhou com isso: essa condição tem o efeito publicitário de apagar da memória de parte do eleitorado o desconforto com suas posições belicistas e com seu discurso nazifascista (morte ao gay e ao “bandido” de favela; surra nas mulheres; militarização da educação etc); e, na economia, “legitimar” o aval de grupos conservadores ao seu “ministro” da Fazenda, Paulo Rabello de Castro, e ao seu extremismo ideológico: venda de todas as estatais; fim da educação pública; condenação total dos direitos de cidadania previstos na Constituição etc etc etc. Para o eleitor classe alta de Bolsonaro, quanto mais ele se expõe, mais difícil fica uma adesão às claras.
Veio a calhar também o prazo previsto para sua recuperação, que convenientemente deverá tomar todo o processo eleitoral do primeiro turno. Com isso, Bolsonaro evita expor sua ignorância em debates e entrevistas na televisão, substituídas com astúcia por um cansativo plantão da Globo, de 24 horas, na porta do Hospital Albert Einstein, onde os repórteres lembram, em cada uma das tomadas em que a única novidade anunciada não é nova (Bolsonaro se recupera/está estável/fala), que o candidato foi vítima de um atentado; exibe seu vice, general Mourão Filho, jurando participação do PT no episódio; e dá notícias de juízes e procuradores mineiros tentando forçar a imagem de um complô do qual teria participado um visivelmente desequilibrado e simples cidadão, munido de uma faca embrulhada num papel.
A insegurança do eleitorado que até agora tem mantido em evidência a candidatura de Lula, apesar do bloqueio da grande mídia, encontra estímulo na estratégia arriscada do partido de manter até o último momento a postulação do ex-presidente, apesar de todas as evidências de que os juízes de primeira e segunda instâncias e os tribunais superiores continuam obedecendo ordens e orientações do juiz de piso Sérgio Moro, o maestro do golpe jurídico de 2016 e de todos que se seguiram a ele com alvo exclusivo no partido majoritário nas intenções de voto, o PT. O “timing”, de fato perigoso, e decisões diretas de confronto, como a manutenção da propaganda eleitoral de Lula presidente, têm sido altamente desestabilizadores do eleitorado petista. E o são porque, para esses eleitores, a hipótese de derrota para um candidato de direita (Bolsonaro, mas também Alckmin – os dois com mais chances de adesão do eleitorado conservador) representa a morte definitiva de uma democracia que agoniza e já está quase nos estertores. Quatro anos de um governo de direita enterraria os direitos sociais que sobraram da sanha do governo golpista do PMDB, a soberania nacional e o patrimônio público de forma senão irrecuperável, muito difícil.
Em uma coisa, todavia, o PT e Lula têm razão: o momento exige sangue frio. A guerra política contra o partido, e sobretudo contra Lula, torna-se cada vez mais um massacre. As facadas vêm de todos os lados: da Justiça; de grupos paramilitares incentivados principalmente por Bolsonaro, que atiram contra a caravana de Lula sem sequer serem advertidos e agora baleiam candidato a deputado na República de Curitiba; da Polícia Militar, que reprime apenas partidários da esquerda. A guerra institucional, paramilitar e militar contra as esquerdas assumiu uma dimensão assustadora e a denúncia tornou-se absolutamente necessária para expor o caráter autoritário e de excepcionalidade do regime. A condição de preso político de Lula é reforçada cada vez que a Justiça toma decisões desfavoráveis aos seus direitos políticos e de cidadão. Aquelas que são contra o PT cumprem a mesma função. Esta é não apenas uma estratégia eleitoral, mas da luta democrática, à qual claramente se unem as outras forças oposicionistas de esquerda. E ambas são igualmente importantes.
O jogo é pesado e a maior vítima desse sistema está preso. Lula foi o grande artífice de uma democracia de perfil social que durou 14 anos e caiu com um golpe. É o grande gênio político dessa geração, talvez comparável apenas a Getúlio Vargas; e o melhor presidente que o País já teve, superando o próprio Getúlio. Mas está na cadeia. A definição de estratégias para enfrentar o momento mais crítico dos últimos 33 anos (contados a partir da ascensão de um presidente civil ao poder) hoje tem um peso muito maior da máquina partidária do que teve antes, em eleições em que Lula era a palavra final da maioria das decisões do partido.
Embora o partido prefira não correr riscos sem consultar Lula – e assim tem feito – o funil de informações passa pela direção partidária e pelo candidato a vice-presidente, Fernando Haddad (o escolhido para substituir Lula e até as pedras sabem disso, embora a grande imprensa ainda insista na existência de uma enorme dissenção interna que, pela lógica e pelos fatos, não pode existir: ninguém de juízo no PT quer mudar um quadro eleitoral já conturbado a 26 dias do primeiro turno, inclusive porque já estão envolvidos numa eleição cheia de riscos).
Existem, todavia, fatos que devem ser pesados para atenuar o excesso de ansiedade das forças democráticas brasileira, em geral.
O eleitorado de Lula, transferível para Haddad, não é o de Bolsonaro. Quando o candidato do PSL é vitimizado, quem corre riscos de perder votos são os candidatos de direita. Quem deve se preocupar é o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin. Todo o resto desse espectro político (Henrique Meirelles, João Amoedo, Álvaro Dias e quetais) não tem condições de ir ao segundo turno e não ameaça os preferidos da direita.
A “desunião” da esquerda não é desunião. O cenário não está definido porque oficialmente o PT ainda não tem candidato. O potencial de transferência de intenções de votos de Lula para Haddad é grande e é real. O único que pode ameaçar a ida do PT para o segundo turno é Ciro Gomes (PDT) – e daí a aliança com o PT e as outras esquerdas seria feita naturalmente no segundo turno, assim como o apoio de Ciro ao PT na hipótese de o partido de Lula vencer a primeira etapa eleitoral.
A guerra de primeiro turno, de ambos, é com a direita. E do segundo turno também, mas neste com a unidade formal dos candidatos de centro-esquerda. Marina Silva, nova estrela da centro-direita, é capaz de preferir os seus recém aliados. A polarização já existia antes das eleições entre PT e PSDB. Com a evaporação do PSDB, ela se deslocou, de um lado, para uma direita mais radical; de outro, para uma esquerda cujas divergências e disputas internas estão longe de se assemelhar as que imperam no canto oposto. Não existem, hoje, divergências fundamentais entre os partidos progressistas.
O cálculo do presidente Lula, ainda em liberdade, de estimular a candidatura de Guilherme Boulos pelo PSOL, mostrou-se correto. Boulos está longe de ameaçar o PT com os voto que terá no primeiro turno, que são e serão marginais, mas tem a oportunidade de investir num futuro político de médio e longo prazos apresentando-se ao público nacional no horário eleitoral gratuito. Da mesma forma, Manuela D’Ávila, do PCdoB, que desistiu de sua candidatura para se tornar vice de Fernando Haddad, está fixando a sua imagem nacionalmente. São os dois nomes da esquerda que Lula estimulou e ambos dão densidade à campanha de esquerda e à denúncia do golpe à democracia e se credenciam para um futuro carente de novos quadros. Todos, Ciro incluído, estarão juntos no segundo turno. As eleições deste ano continuam polarizadas entre a esquerda e a direita – e assim continuarão, a despeito de eventuais mudanças no quadro atual. Não há chances de irem dois candidatos de direita para o segundo turno, como não há possibilidade de dois de esquerda.
As esquerdas, agora, devem se preocupar em prover de muito equilíbrio qualquer estratégia que envolva Lula. Ninguém pode duvidar de sua capacidade de transferência – num primeiro turno, para Haddad, ou num segundo, se o petista não conseguir, mesmo assim, reunir a quantidade de votos necessários para ir ao segundo turno. A partir de agora, o que vale é a capacidade de Haddad e do PT realizarem uma transferência apenas potencial. Afinal, Lula não pode subir no seu palanque porque está preso. E, do lado de fora, a militância tem que se mobilizar sem o seu comando. A diferença desta para as outras eleições pós-ditadura militar é essa: o desafio eleitoral não está unicamente nas mãos de Lula, virou uma responsabilidade coletiva. O problema é deixar passar o tempo e o PT, teoricamente com mais capacidade para pegar os votos lulistas, ficar sem candidato.