Por PH de Noronha, compartilhado de Projeto Colabora –
Para o historiador Márcio Scalercio, sociedade civil precisa discutir com os militares qual deve ser seu papel no século 21
O professor de História Márcio Scalercio, do curso de Relações Internacionais da PUC do Rio, é especialista em conflitos internacionais e forças armadas. Possui uma calma chinesa para explicar, de maneira didática, temas complexos como, por exemplo, a divisão de forças militares e políticas envolvidas na guerra da Síria. Seja para seus alunos, seja para milhares de espectadores no antigo programa do Jô Soares, onde já foi entrevistado. Mas quando se depara com alguns temas polêmicos do Brasil de hoje – caso da absolvição do general Pazuello pelo Exército – ele solta o verbo:
“Isso é o Bolsonaro, mais uma vez, agindo no sentido de esculhambar a instituição militar, tal como fez quando era oficial do Exército, quebrando os elementos de hierarquia e disciplina. Agora ele faz isso de novo, comprometendo o Exército e as Forças Armadas. (…) O Exército está se desinstitucionalizando e se ‘reabananando’, porque tudo isso é coisa de República das Bananas.”
Mestre e doutor em Relações Internacionais, Scalercio é autor de livros sobre a história do Oriente Médio e a economia norte-americana do século 19, além de biografias de Sobral Pinto e Eugênio Gudin. Ao longo dos governos FHC e Lula, conviveu com militares brasileiros num período em que houve uma intensa aproximação entre oficiais das três Forças Armadas e o meio universitário. Chegou a fazer palestras na Escola Superior de Guerra e na Academia Militar de Agulhas Negras – um dos principais redutos bolsonaristas no Exército, onde falou sobre terrorismo internacional.
Apesar dessa convivência e de seus estudos sobre os militares brasileiros, ele diz que a “caixa preta” das nossas Forças Armadas ainda não foi aberta. E que é preciso que a sociedade civil discuta com os militares qual deve ser seu papel para o século 21.
Como qualificar a decisão do Exército Brasileiro de não punir o general Eduardo Pazuello, por sua participação num ato político liderado pelo presidente Jair Bolsonaro?
Eu faço parte de um grupo acadêmico recém-criado, o Núcleo de Estudos de Democracia e Forças Armadas (Nedefa), onde discutimos o assunto. Existe o estatuto dos militares e o código de disciplina das Forças Armadas, que dizem que um militar da ativa não pode participar de atividades políticas e partidárias. E foi exatamente o que o general Pazuello fez. Esse tipo de regulamento é muito comum entre as forças armadas de estados democráticos. Ao não condenar de modo algum o general – e veja que nesse caso condenar não é mandar prender ou fuzilar, é basicamente uma advertência – o Exército tomou uma péssima atitude do ponto de vista da relação dos militares brasileiros e da própria instituição com a democracia. Porque coloca o Exército assumindo uma posição político-partidária, o que é uma ideia muito ruim. Mas a crítica não é ao Exército apenas, é, principalmente, ao presidente da República e ao ministro da Defesa. Quem deveria ter mediado essa história e exigido a punição do general é o ministro da Defesa (general Walter Braga Netto). Mas o ministro virou compadre do presidente, e não é para ser assim, ainda mais que ele também é um militar, o que torna a coisa ainda mais confusa. Isso é o Bolsonaro, mais uma vez, agindo no sentido de esculhambar a instituição militar, tal como fez quando era oficial do Exército, quebrando os elementos de hierarquia e disciplina. Agora ele faz isso de novo, comprometendo o Exército e as Forças Armadas.
Qual foi o impacto dessa decisão entre os oficiais do Exército?
Entre oficiais generais, especialmente os do alto comando, de 4 estrelas, eu acredito que isso deve ter repercutido muito mal. Pode ser que essa crise ainda se resolva de modo interno. Por exemplo, o alto comando pode negar a quarta estrela a Pazuello. Quem nomeia os oficiais generais é o presidente da República, mas quem compõe a lista dos “promovíveis” é o alto comando do Exército. Quem decide quem vai a general e quem vai botar o pijama não é o presidente, é o alto comando. Bolsonaro só recebe a lista e assina a promoção. Então, o alto comando pode mandar a lista dos promovíveis a 4 estrelas sem o nome do Pazuello. Bolsonaro disse que, se punissem Pazuello, ele daria contraordem mandando desfazer. Diante disso, imagino que os generais avaliaram que estariam diante de uma crise militar, porque o presidente estaria desautorizando o alto comando do Exército. Então, resolveram não comprar esse barulho. Mas, ao mesmo tempo, também podem ter decidido: “A quarta estrela dele, dançou”. É uma especulação minha, mas que faz sentido. De um jeito ou de outro, não há a menor dúvida de que Pazuello tinha que ser punido. E o Exército não publicou o conjunto de justificativas que ele apresentou, talvez para poupar a sociedade de cair na gargalhada em meio ao escárnio total dos argumentos dele. Pazuello dizer que aquilo não era um evento político, nem partidário, porque o presidente não tem partido, é simplesmente patético, é um argumento totalmente idiota. Na França, estamos vendo uma situação grave, que são generais da reserva, juntamente com oficiais da ativa, anônimos, dizendo que o rumo do país vai levar a uma guerra civil – isso é gravíssimo! Para mim, é mais uma prova de que a ultradireita está articulada em termos internacionais. Não sei até que ponto nossos militares se articulam com a ultradireita em termos globais. Aqui, quando Bolsonaro se elegeu, os veículos da guarnição de Niterói saíram em carreata pela cidade comemorando a vitória de um candidato a presidente. E eles só fizeram isso porque algum coronel autorizou, talvez até tenha sugerido. E o general superior ao coronel não puniu ninguém. Aquilo foi o fim da picada, jamais poderia ser permitido. O Exército está se desinstitucionalizando e se “reabananando”, porque tudo isso é coisa de República das Bananas.
Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula, o Exército brasileiro parecia ter se adaptado aos novos tempos democráticos. Agora parece estar voltando a agir e pensar como na ditadura militar. O que aconteceu?
Lembro-me de pesquisas de opinião, várias, feitas depois da Constituição de 1988, que a cada ano faziam avaliação sobre a aceitação de instituições pela sociedade, e nelas o Congresso Nacional sempre aparecia mal, e as Forças Armadas muito bem. Ao longo dos anos, isso foi aumentando a vaidade dos membros das Forças Armadas, especialmente do oficialato. “Olhe, nós somos confiáveis, somos aceitos pela opinião pública, não estamos metidos nessas confusões de corrupção, mensalão, Lava-Jato…”. Isso veio consolidar a tradição das Forças Armadas de acharem que são os únicos patriotas que existem no Brasil, os únicos verdadeiramente compenetrados num projeto de nação. Essa cultura existe, é muito forte, e não é de agora. É um discurso que desponta principalmente na época do tenentismo, onde parte do discurso rebelde era esse, de que apenas o Exército era imbuído da capacidade de sacrifício em prol do país. Isso é apontado por historiadores como José Murilo de Carvalho e Frank McCann, para mim o que melhor escreveu sobre nosso Exército (historiador da Universidade de New Hampshire, EUA, que estudou o Exército brasileiro por mais de meio século e escreveu os livros “Soldados da Pátria: história do Exército brasileiro, 1889-1937” e “A Nação Armada: Ensaios sobre a História do Exército Brasileiro”). O problema é que a relação das instituições democráticas brasileiras com as Forças Armadas não foi debatida como deveria na Constituinte de 1987-88. O que aconteceu foram conversas marginais, em que as Forças Armadas e as Polícias conseguiram praticamente estabelecer uma reserva de mercado, definindo que quem trataria disso seria apenas elas, e mais ninguém. E as forças políticas da época acabaram coadjuvando e concordando com isso, temendo que qualquer outro tipo de atitude pudesse colocar em risco o processo de transição da ditadura para a democracia.
Você acha que essa complacência na Constituinte teve a ver com o espírito da Lei da Anistia, que preservou os militares de julgamentos sobre sua atuação na ditadura militar?
Sim, tem a ver com a cultura política brasileira pós-ditadura de “não mexer com os militares” (ao contrário do que aconteceu na Argentina, onde os militares foram julgados e condenados). E, também, com o modo pelo qual nossa transição aconteceu. Eu discordo de quem diz que nossa passagem da ditadura para a democracia foi “fruto de uma vitória do movimento popular e da luta política democrática”. Sim, teve luta política, eu estive nela e você também, mas não foi só por causa disso. Tivemos um processo de transição que foi arquitetado pelos próprios militares e pelas forças políticas que os apoiavam. Tivemos uma transição consentida no Brasil, diferentemente da transição na Argentina, que foi avante por causa da derrota na guerra das Malvinas e que teve como ponto de partida a desmoralização dos militares. Tanto que muitos desses militares foram levados a julgamento, lá havia clima para isso. Aqui, não houve esse clima, tivemos uma Lei da Anistia que beneficiou os dois lados. O pessoal da esquerda que sobreviveu e que foi prejudicado no período militar acabou recebendo compensações financeiras, o que, a meu ver, foi uma maneira de acomodar as coisas também.
E o que aconteceu depois?
Uma grande mudança, que mexeria nessa relação das Forças Armadas com a sociedade civil, foi o Fernando Henrique que protagonizou, criando o Ministério da Defesa, eliminando os ministérios militares e determinando que os ministros da defesa seriam civis. Essa última parte não estava na lei, mas sim na decisão política de Fernando Henrique. Acontece que, ao mesmo tempo, nesse período dos governos FHC e Lula, houve uma aproximação dos militares com a academia, com oficiais da ativa fazendo mestrado e doutorado na PUC e em outras universidades. Quando eu fiz meu doutorado na PUC em Relações Internacionais, tive como colegas um almirante da reserva e um capitão de Mar e Guerra, que hoje é almirante da ativa. Paralelamente, eu mesmo fui convidado para fazer palestras e ministrar cursos na Escola Superior de Guerra e na Academia Militar de Agulhas Negras, entre outras instituições do Exército e da Marinha, e até para escrever livros com militares. Eu participei de um livro sobre guerra no mar no qual metade dos escritores eram militares, e a outra metade acadêmicos civis. Houve um estreitamento no relacionamento dos militares com a academia, por iniciativa mútua. Essa aproximação diminuiu muito no governo Bolsonaro, mas, no meu entender, houve um divisor de águas na piora das relações entre parte da comunidade acadêmica e os militares. E esse divisor de águas não foi o Governo Bolsonaro, mas sim a Comissão Nacional da Verdade instituída pela presidenta Dilma Rousseff em 2011. Eu fui desfavorável à iniciativa, e continuo pensando assim, por dois motivos. Primeiramente, por causa do tipo de transição que tivemos, com a Lei da Anistia para os dois lados, que já havia resolvido: dali para a frente, seria dali para a frente, e ponto final. Em segundo lugar, quando a Comissão foi instituída, já havia passado mais de 25 anos do fim da ditadura. O que é diferente do que aconteceu na África do Sul, cuja comissão da verdade inspirou a nossa (que é praticamente uma cópia da comissão sul-africana). Lá, ela aconteceu logo após o fim do apartheid, quando ainda fazia sentido. Aqui, após 25 anos, muita gente já havia morrido, uma série de histórias já haviam sido perdidas. E aí a iniciativa instilou entre os militares – especialmente os da reserva, que, mesmo de pijama, são muito ativos politicamente – uma grande indignação, eles se sentiram traídos. Eles já se sentiam desconfortáveis com a reparação em dinheiro, que não aconteceu para eles nas proporções que ocorreram do lado da esquerda. Acho que ali, com a criação da Comissão da Verdade, a vaca começou a ir para o brejo. Velhos rancores e velhos hábitos, que em verdade jamais foram alterados, voltaram à tona e acabaram ganhando grande dimensão com a campanha do Bolsonaro para a presidência em 2018. A Comissão da Verdade destampou uma insatisfação latente. Lembro-me de um general da ativa, que tinha trabalhado normalmente com os governos de esquerda. O pai dele foi acusado na Comissão de comandar uma unidade onde havia acontecido torturas. Esse general ficou indignado, porque na concepção dele o pai era uma pessoa honrada, que jamais se envolveria em situações daquele tipo, e ele considerava que aquelas acusações eram verdadeiras calúnias, numa situação em que seu pai sequer conseguia se defender, porque já estava morto. Como era um general com muito prestígio, e que todos entendiam como uma pessoa correta, a indignação dele teve uma repercussão grande dentro das Forças Armadas e entre oficiais inativos. Ali houve um divisor de águas. Ninguém foi punido pela Comissão, mas a honradez e a dignidade das pessoas foram expostas ao público. Isso deixou os militares indignados. Eu tinha alunos na Casa do Saber que eram oficiais da Marinha, e uma vez cheguei na aula e dois deles estavam redigindo uma nota esculhambando a Comissão da Verdade. Duvido que na época do Lula tenham se oposto visceralmente ao governo, mas naquele momento achavam que aquilo era uma espécie de revanchismo da Dilma, até pela história dela durante a ditadura. Se eu fosse presidente, não teria feito a comissão. Faria outras coisas: vamos discutir o sistema de ensino militar, conversar sobre as Forças Armadas que o Brasil precisa? O modelo que temos é válido, ou é ultrapassado? Precisamos desse contingente todo? Precisamos gastar mais dinheiro na capacitação científica e tecnológica das Forças? Essas discussões, para mim, eram melhores do que criar a Comissão da Verdade. Que acabou ajudando a por lenha na fogueira da insatisfação militar.
Mas foi apenas a Comissão da Verdade que causou essa mudança?
Não. Tivemos a campanha contra o PT no campo da corrupção. Muitos militares têm cabeça de classe média. Eu até brinco que eles são classe média tijucana. Do ponto de vista econômico, eles se acham liberais e seguidores da escola de Chicago, acham a política uma coisa nojenta, que pode lhes conspurcar a alma, preferem distância e entendem que as autoridades públicas têm que ser limpas, na medida do possível. Aí vieram os escândalos do mensalão, que colocaram em xeque a honestidade do governo do PT. E, em sequência, veio a Lava-Jato. Para quem já não é muito simpático às teses de partidos de esquerda, sociais-democratas e afins – especialmente a turma mais velha, que é do tempo da Guerra Fria – isso acabou produzindo uma sensação generalizada de que aquilo era um problema dos governos e partidos de esquerda, que corrupção e esquerda andam juntas e são indissociáveis. Esse tipo de análise já existia, está no âmago das Forças Armadas brasileiras. Por exemplo, o padroeiro da Força Aérea é o brigadeiro Eduardo Gomes, que era anticomunista de carteirinha. Como bem disse o Jânio de Freitas em sua coluna na Folha de S. Paulo, num artigo sensacional, esses militares são caudatários da hegemonia norte-americana. Eles fazem cursos de aperfeiçoamentos em escolas norte-americanas, e os norte-americanos usam esses cursos como forma de influência política e econômica. Hoje, estamos vivendo uma situação em que muitas das características lamentáveis da instituição Forças Armadas brasileiras vieram à tona depois desses acontecimentos. Juntou mensalão, Comissão da Verdade e Lava-Jato e a isso eu acrescento o fato, que eu acho que é o problema central, de não termos aberto a caixa-preta das Forças Armadas após a ditadura militar. O que são nossas Forças? Como elas se integram na sociedade democrática? Que tipo de Forças precisamos para o século 21? Isso não é uma coisa que possa ser discutida exclusivamente por eles. Tem que ser discutido com acadêmicos, com cientistas, com técnicos, com as forças políticas da sociedade civil. Tenho certeza de que, no que diz respeito à segurança nacional, se as Forças Armadas brasileiras, no estágio que estão, forem desafiadas por algum adversário perigoso – e não contra estudantes se manifestando na Avenida Paulista – elas não têm condições de atuar de modo adequado para cumprir seu papel de defesa nacional.
Antigamente, os militares brasileiros eram nacionalistas, defendiam a Petrobras, a Amazônia, a Eletrobras. Hoje, fala-se abertamente em privatização e destrói-se a floresta amazônica, e nenhuma liderança militar contesta essas ações…
Eu acho (mas não tenho nenhuma pesquisa para corroborar isso) que os militares de hoje são mais liberais do que nacionalistas. Muito embora eles sempre digam que são nacionalistas. Foi vitoriosa no oficialato a perspectiva de adoção do liberalismo econômico, que começou nos anos 70 com Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Eles são treinados e educados dentro da mentalidade que vigora nas academias militares. A questão é o que eles estão aprendendo e o que estão lendo. É parte da caixa-preta que não abrimos. E as Forças Armadas não podem ficar fechadas na sua própria caixinha. Têm que interagir muito com a iniciativa privada e com a academia, senão vem um Pazuello e resolve tudo sozinho, e aí já sabemos no que vai dar…
Como as nossas Forças Armadas chegaram a esse ponto? A doutrina está errada?
Classicamente, a doutrina militar é fundamentada no tipo de ameaça que você vai sofrer, nos prováveis inimigos que terá. Na época de Getúlio Vargas, por exemplo, o Brasil era preocupadíssimo com a Argentina, que era nosso tradicional inimigo, mas que já deixou de ser há muito tempo. Se você não tem uma visão do adversário provável, como poderá estabelecer a doutrina, prever o treinamento e o tipo de equipamento que vai comprar ou produzir? Já participei de um seminário de defesa no qual os militares estavam preocupadíssimos com a Venezuela. E eu dizia a eles que o governo da Venezuela era um problema gravíssimo – mas para os venezuelanos, não para nós. Nunca passou pela cabeça dos governos venezuelanos de Maduro para cá a ideia esdrúxula de invadir o Brasil. Mas quando o militar chega ao ponto de fazer um estudo sobre hipótese de guerra com a Venezuela, é porque ele não tem hipótese melhor para inventar… Lembro de um militar que disse assim num seminário: “Todos os poderes imperialistas estão aqui na América do Sul”. Eu fiquei olhando para a cara dele… “Como assim?”, perguntei. Ele desenvolveu: “Os norte-americanos reativaram a 4ª frota. Os russos estão na Venezuela. Os franceses estão na Guiana. E os chineses estão em toda parte, porque eles estão vendendo em toda parte para todo mundo…”. Patético. Ao mesmo tempo, o fato de não termos um inimigo externo explícito – uma potência que nos ameaça na fronteira ou uma guerra fria – leva os militares cada vez mais a se burocratizarem e agirem como funcionários públicos tradicionais, que só pensam no salário, na pensão, na aposentadoria. O assunto passa a ser esse. Sem falar nos cargos comissionados no Executivo, como estamos vendo neste governo, com milhares de militares da ativa recebendo ganhos salariais extras, agora ainda mais beneficiados pelo fim das limitações ao acúmulo de salários.
Então, nossas Forças Armadas estão mal preparadas para cumprir seu papel constitucional, de defesa da pátria?
Nosso desenho militar sempre vai a reboque do que as potências de ponta estão fazendo – sem que sejamos capazes de imitar, porque não temos equipamento. E sem também que isso tenha de fato a ver com as ameaças principais contra o Brasil. Vamos falar das tarefas que nossa defesa teria. “Ah, temos que patrulhar o mar”. Precisamos de meios aéreos e navais para patrulhar o mar. Que você não patrulha com navios, mas com aeronaves. O avião, o helicóptero ou o drone chegam muito mais depressa que o navio. A gente também precisa de uma guarda costeira, porque o litoral brasileiro é uma peneira. No Rio, de onde milicianos e traficantes conseguem armas? Em grande parte através do porto. É um problemão de fiscalização e de guarda do litoral, que a Marinha não tem condições de dar conta. Porque não tem equipamento nem pessoal, não é por falta de vontade. Mas se você sugerir criar uma guarda costeira independente, a Marinha é contra. Porque acha que vai tirar recursos dela, Marinha, e será uma guarda corrompida, como são as polícias de maneira geral. A outra proposta é a Marinha ser estruturada como uma força para realizar a guarda costeira. Eu acho uma ideia razoável, mas eles ficam danados da vida e dizem que não, porque isso é proposta dos Estados Unidos, que não querem que o Brasil tenha uma Marinha, mas sim uma guarda costeira. Os oficiais navais querem ter uma Marinha de guerra, com porta-aviões, com grandes belonaves, que custam uma fortuna. A Marinha brasileira sonha com porta-aviões, ainda que eles não tenham qualquer aplicação em nossa capacidade defensiva… Caramba, porta-aviões é um problema danado, não há belonave que flutue que seja mais vulnerável do que um porta-aviões. Para ele sobreviver, num ambiente hostil, precisa de uma escolta, de uma força-tarefa que o proteja. A gente não tem navios de escolta. Nem aviões de último tipo para porta-aviões, os que temos são Skywahk do tempo da guerra do Vietnã. Quem no mundo tem porta-aviões? Os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha, a Índia, a Rússia e a China. Mais ninguém tem porta-aviões. É um equipamento que não tem o menor sentido para o Brasil. Em 2018 compramos um porta-helicópteros, o Navio-Aeródromo Multipropósito (NAM) Atlântico, que serviu por 20 anos à Marinha britânica, o que já é um equipamento bem mais razoável, porque tem mais flexibilidade. Já o submarino nuclear, eu defendo por duas razões. Primeiro, pelo que eu li sobre a Guerra das Malvinas. Um único submarino nuclear inglês paralisou toda a Marinha argentina; os argentinos não podiam mover seus navios, não tinham armamento para enfrentá-lo. E em segundo lugar é por causa da tecnologia nuclear, pois os franceses estão fazendo o casco, mas o reator é produção nossa, é a Marinha que está fazendo. Um submarino nuclear não precisa ir para a superfície por meses e viaja debaixo d’água tão rápido quanto na superfície. É uma arma de dissuasão que eu vejo sentido em termos na Marinha.
Que Forças Armadas o Brasil precisa, efetivamente?
O primeiro-ministro da França durante a Primeira Guerra Mundial, Georges Clemenaceu, já dizia que guerra é um assunto muito sério para ser tratada por generais. E nós não temos perspectiva de fazer guerra com ninguém. Temos é que tomar conta do nosso espaço aéreo, do nosso litoral, de nossas fronteiras, porque os perigos que o Brasil enfrenta são vinculados a coisas como o crime organizado internacional, o tráfico de drogas e de pessoas, o contrabando de armas e outros produtos. E nenhuma dessas coisas nós vamos resolver sozinhos, precisamos agir em colaboração com outros países. Mas temos que manter as coisas devidamente monitoradas, cuidar da nossa cerca, do nosso quintal. Essa é a tarefa das Forças Armadas, no meu modo de ver: preservar o território nacional e as pessoas que vivem nele – e não atirar nas pessoas que vivem nele, como alguns gostariam de fazer. E é uma tarefa gigantesca, porque o Brasil é gigantesco. É preciso fazer uso de recursos eletrônicos modernos e da ciência, pensar de uma forma multidisciplinar. E repensar nosso modelo militar. Por exemplo, o Exército é muito maior do que a Marinha, há muito mais generais do que almirantes. E, em termos proporcionais, tem general demais. Proporcionalmente, temos mais generais e coronéis no Exército do que as Forças Armadas de Israel. E não temos as ameaças à segurança nacional que Israel tem. Algum dia teremos que rediscutir o tamanho do contingente militar, isso é inevitável. Hoje, graças à ciência e às tecnologias, você tem a capacidade de projetar seu poder a partir de meios de detecção. Você não precisa ter tropas cobrindo determinada área, tem drone, tem o diabo em meios eletrônicos que permitem a detecção de qualquer ameaça em qualquer área. Precisamos de mais recursos tecnológicos, e de menos tropas e generais.