Por Paulo Moreira Leite, Brasil 247 –
Em dezembro de 1968, quando o Brasil ingressava na noite do AI-5, que abriu a fase de terror da ditadura militar, o vice-presidente da República Pedro Aleixo produziu uma frase insubstituível sobre a capacidade dos regimes de exceção transformarem a vida do país numa baderna institucional. Justificando seu voto, o único contrário ao AI-5, Pedro Aleixo explicou com a elegância possível na hora que a partir daquele instante a vida política iria se transformar num vale-tudo de atos violentos, sem qualquer amparo constitucional:
— Não tenho nenhum receio em relação ao presidente. Tenho medo do guarda da esquina.
Quarenta e nove anos depois de um período em que o país enfrentou uma sequencia de barbaridades que não é preciso recordar, a profecia voltou a se materializar na manhã de hoje. Vestindo uniformes cinzentos da PM paulista, um guarda da esquina de 2017 — o termo não tem caráter ofensivo, apenas se refere a um grau na hierarquia das forças responsáveis pela segurança pública — deu ordem de prisão para Guilherme Boulos, líder do MTST, que tentava negociar a retirada de 700 famílias que ocupavam um terreno em São Matheus, na periferia de São Paulo. Então está combinado.
Num país onde a moradia popular é uma tragédia, agravada pela decisão do governo Michel Temer em esvaziar o Minha Casa, Minha Vida, a única providência que ocorre às autoridades do governo Geraldo Alckmin, o estado com o maior PIB do país, é prender uma liderança que procurava uma saída negociada para o futuro de alguns milhares de pessoas sem casa e sem amparo. “Cometem a violência de despejar 700 famílias e eu é que sou preso por incitar a violência,” reagiu Boulos.
A criminalização de movimentos populares é uma das primeiras estratégias para a construção de toda ditadura. Rebaixando o debate de assuntos obviamente políticos, procura-se retirar a legitimidade de de quem está submetido a uma situação de absoluta destituição de direitos, sem outro argumento real além da mobilização. A saída oferecida é se submeter ou se submeter.
No país de hoje, a prisão de Boulos é uma forma de intimidar e demonstrar força, semelhante a invasão exibicionista da Escola Florestan Fernandes, do MST. Guarda uma relação evidente com a pressão contra Lula, ainda que este caso se desenrole em outro patamar.
Representa, de qualquer forma, uma tentativa de substituir a democracia pelo porrete, numa repetição do velho sonho de transformar a questão social num caso de polícia — realidade que os brasileiros começaram a abolir após 1930.
O guarda da esquina do AI-5 tinha função de perseguir — com métodos que chegaram à tortura e execuções de prisioneiros — aquelas lideranças de organizações de massa que, como a UNE e movimentos de trabalhadores, ousavam enfrentar o regime militar.
Era capaz de agir sem receber ordens, às vezes, apenas porque era capaz de sentir o “espírito do tempo” — dar porrada. Também podia servir como bode expiatório, responsável por “excessos incontroláveis” — eufemismo sempre útil para generais que queriam transferir a própria responsabilidade para sargentos.
Em 2017, suas ações pretendem criar um ambiente favorável a um retrocesso brutal, que implica numa retirada de direitos e conquistas . A prisão de Boulos mostra que a simples simples tentativa de debater e negociar interesses divergentes pode ser vista como ameaça à ordem legal — o que é inaceitável num país onde a Constituição diz que a erradicação da miséria e da desigualdade são objetivos nacionais.
A frase de Pedro Aleixo foi a lição positiva de uma catástrofe absoluta em dezembro de 1968. A ressalva ( “não tenho receio do presidente”) mostrou-se um absurdo, que traía um viés elitista. Mas era uma rejeição e um voto contra o AI-5, o que não era pouco.
Mas outro personagem, o ministro Jarbas Passarinho, deixou uma lição oposta. Ao votar a favor do AI-5, Passarinho explicou aos presentes que decidira “mandar às favas os escrúpulos de consciência.”
Quatro décadas depois, a prisão de Boulos coloca os brasileiros na posição de optar. Podem denunciar um ato contra a democracia.
Ou podem mandar “às favas os escrúpulos de consiciência.”
Nesta hora, cada um sabe o que fazer.