Brasil 75/25 : Cloroquina e terraplanismo estatístico

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Por Luiz Jurandir Simões de Araujo, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP

Luiz Jurandir Simões de Araujo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Recentemente, num importante jornal paulista (com alcance nacional) houve um debate intenso contra e a favor, com artigos e livro que mostravam casos específicos vinculados aos séculos de escravidão. Alguns artigos e trechos de livro mostraram que havia mulheres pretas ricas (que compraram suas alforrias) e até eram senhoras de escravos. Longos textos, exaustivos debates.




Frases que não dimensionavam o fenômeno, por exemplo “Casos assim são exemplos anedóticos ou um fenômeno mais consistente? Certamente não eram raros, pelo menos em regiões em que a economia prosperava e criava oportunidades”.

O que significa não eram raros? Cem, mil, um milhão? Em porcentagem relativa aos cinco milhões de negros que chegaram vivos ao Brasil, quantos porcento são esses casos? Nada de número, só frases enigmáticas, por exemplo: “Na verdade, pesquisas mais recentes indicam, com segurança razoável, que mulheres de cor libertas formavam a categoria mais rica de nossa sociedade, depois dos homens brancos”.

Por que muitos profissionais da palavra (intelectuais, jornalistas, sociólogos e tantos outros) não explicitam números e optam por fazer longas discussões? Para poder ter assunto e espaço, pois números objetivos são secos, sem glamour e charme e, sobretudo, não dão espaço para opiniões sem fundamento? Números simples, bem analisados e calculados explicitam as fraquezas de nossos argumentos?

Se os números fossem colocados no texto surgiriam as conclusões simples e óbvias. Esses casos distantes do horror da escravidão realmente aconteceram, há documentação histórica disponível. Foram em larga escala? Não. Foram numericamente insignificantes. Ou seja, muito texto para mostrar exceções raras que dão a impressão de que o horror não aconteceu. Típica estratégica de Górgias (blablazeiro personagem de Platão no livro Górgias, senhor de fala bonita, sem conteúdo, pura retórica, que levava de 7 a 1 de Sócrates).

Qualquer historiador que mergulhar nos números de todos os mais cruéis eventos históricos (escravidão, holocausto, grandes perseguições religiosas, diásporas, fugas em massa de populações perseguidas, massacres étnicos etc.) constatarão um número gigantesco de pessoas sofrendo, sendo assassinadas, torturadas, chicoteadas, queimadas, empaladas, dilaceradas por leões. Mas, também constatarão algumas exceções proporcionalmente em número ínfimo em relação ao todo. Pessoas de dentro desses grupos que se beneficiavam das oportunidades que todo arranjo histórico abre.

Exceções acontecem? Claro. Óbvio. Comprovam que fenômenos sociais amplos e complexos tem emaranhado de casos, mas os números berram: a grande maioria padeceu e casos pontuais, estatisticamente imateriais ocorreram. Simples assim. Esse padrão que chamo 99:1 é recorrente na história: da brutalidade do império romano à escravidão nas Américas.

Em alguns casos pode ser 98:2, 96:4, 99,99:0,01. Mas, não é muito distante de quase todos versus quase nada.

Por que as áreas do conhecimento que tem um pendor verbal não usam números e estatísticas? Para poderem decantar e lustrar palavras que não explicitam nada? Pesquisadores de humanas, jornalistas, homo sapiens sapiens das palavras, por favor, estudem estatística, entendam o que é variância, entendam o que é cauda (magra, gorda, longa) de uma distribuição de probabilidade. Aliás, entendam o que é probabilidade. Depois desse estudo, respondam à pergunta a seguir:

Qual é a probabilidade de uma negra africana enriquecer no Brasil escravagista? Alta? Média? Baixa? Resposta facilmente calculada observando-se os números da época: Baixísssima.

Fenômenos raros existem. Há Pelés e Messis no futebol, há top models que ganham milhões de dólares por ano, há ganhadores da Mega Sena.

Mas, 99,99% não são esses fenômenos raros.

Todo fenômeno social tem uma complexidade endógena e variâncias nos seus indicadores, mas também tem um núcleo de fatos e situações (com fartura estatística) que o configura e delineia. Sem números essa complexidade se transforma em cloroquina analítica, em terraplanismo estatístico.

Na era da informação não dá para ter Górgias ocos. Usem números. Estudem estatística e saem desse buraco argumentativo que não leva ninguém a lugar nenhum.

Nosso sistema educacional formou um exército de escamoteadores dos fundamentos. Frases do tipo “não sou bom de números” são diárias. Não entender a complexidade e os meandros dos modelos matemáticos é uma coisa, não entender as obviedades numéricas é outra. Não estudei letras, mas sei escrever. Você que escreve em jornais, saiba noções de probabilidade, variância, distribuições das aleatoriedades, proporções, como dinâmicas intra e supra grupos humanos ocorrerem. São conhecimentos que formam nossa homo sapiens sapiência.

Relatar a complexidade e amplitude dos fenômenos sociais é muito útil e educativo, mas não custa colocar algumas observações “essa vertente é numericamente insignificante”.

Quando um número muito grande de pessoas está inserido num contexto histórico, em dadas circunstâncias sociais, geográficas e econômicas submetidas à uma estrutura de poder, cada uma reagirá de uma forma. A variância comportamental faz parte da humanidade, mas ao mesmo tempo o modus operandi das estruturas de poder tem uma forma de funcionamento e geração de sequelados. Os números são frios? Sim. São.

A pesquisadora Maria Hermínia Tavares, em artigo no jornal Folha de S. Paulo de 14 de outubro de 2021, realçou essa frieza: “estatísticas são uma forma fria de tratar o desastre humano revelado na feiura das nossas cidades”.

Bisturis são de metal, bem frio, cortam, mas os cirurgiões salvam vidas com eles. Mármore é pedra fria, mas artistas fazem lindas obras cheias de sentimento. Não é no instrumento que pulsa sangue quente, é na pessoa que o utiliza. Os profissionais das Ciências Sociais e das palavras precisam estudar um pouco mais de estatística. Números frios e precisos matam fake-news, terraplanismo, cloroquina e mostram quão ínfimo numericamente foram as sinhás-pretas.

Nos últimos milhares de anos de existência do homo sapiens sapiens, a ciência permeia o cotidiano de muitas pessoas, no máximo sendo otimista, há 200 anos. Mas, ela precisa ser entendida e usada. Precisa estar nos textos dos jornais e nos argumentos para realçar os fundamentos e expulsar as firulas retóricas.

Estudem.

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