Por Camilla Veras Mota, publicado na BBC News Brasil –
Países com diferenças históricas, climáticas e culturais à primeira vista inconciliáveis, Brasil e Rússia há quase 20 anos fazem parte do mesmo grupo de emergentes, os Brics, graças às características que têm em comum na economia.
Assim como Índia, China e África do Sul, os demais países que compõem a sigla, ambos viveram um ciclo de prosperidade até 2010, impulsionado também pelo aumento nos preços internacionais de commodities – o petróleo no caso da sede da Copa e a soja e o minério de ferro, no do Brasil.
Quase dez anos depois, contudo, o cenário é outro: os dois países tentam se recuperar depois de dois anos de recessão e, tanto lá quanto aqui, a retomada é lenta.
A “ressaca” após período de boom econômico, avaliam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, também é reflexo das similaridades entre as duas economias. Ambas dependem da exportação de produtos básicos, cujos preços recuaram, perdem com a baixa produtividade do trabalho e com a falta de inovação na indústria.
Ao contrário do Brasil, entretanto, a dívida pública russa praticamente não subiu durante a crise – avançou de 15,9% do PIB para 17,4% entre 2015 e 2017, contra um salto de 72,5% do PIB para 83,9% aqui – e a taxa de desemprego não foi além dos 5%, em parte por pressão do governo Putin para que as empresas não demitissem.
Mas isso não quer dizer a população não tenha sentido os efeitos da recessão. Os salários encolheram durante esse período, e os russos ainda não recuperaram seu poder de compra.
Em ambos os países, a renda é altamente concentrada. A Rússia tem 101 bilionários – mais que o dobro do Brasil –, e 20 milhões estão abaixo da linha de pobreza, levando em conta as estimativas do governo, consideradas conservadoras.
Apesar da desigualdade elevada, contudo, o país tem desempenho compatível com o de países europeus nos rankings internacionais de avaliações de alunos, como o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) – uma diferença marcante, já que o Brasil ocupa as últimas posições da lista e tem o pior resultado quando se leva em consideração os testes de matemática.
O analfabetismo foi erradicado ainda antes da Segunda Guerra e praticamente não existem crianças fora da escola, conta a professora Elena Vássina, natural de Moscou, que dá aulas de literatura e cultura russa na Universidade de São Paulo (USP).
“Com três ou quatro anos as crianças já começam a decorar poemas de (Alexander) Pushkin na escola”, diz ela, que embarca neste sábado para o país da Copa para assistir aos jogos em casa.
Recessão com inflação alta
O colapso nos preços do petróleo é apontado como principal responsável pela crise econômica que fez o PIB da Rússia encolher 2,5% em 2015 e 0,2% em 2016 – tombo menor que o do Brasil, de 3,5% em cada um dos dois anos.
Cotado a mais de US$ 100 até o início de 2014, o barril chegou a valer menos de US$ 30 em 2016. A commodity é o principal produto de exportação dos russos, representando cerca de 50% de tudo o que país vende ao exterior, entre petróleo cru, refinado e gás.
Além da queda nos preços, as sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados Unidos e União Europeia em 2014, logo após a anexação da Crimeia – região que estava sob o controle da Ucrânia – também tiveram papel importante na crise, acrescenta Nafez Zouk, da consultoria Oxford Economics.
Com menos exportações, o volume de dólares no país diminuiu. Para evitar que a Rússia “vendesse todas as suas reservas” na tentativa de segurar a cotação da moeda americana, o Banco Central passou a adotar o regime de câmbio flutuante, explica o economista, e deixou o rublo desvalorizar.
A moeda chegou a perder 50% do valor nesse período e provocou um salto na inflação, que chegou a ficar ainda mais alta que no Brasil. Em 2015, atingiu 12,9%, contra 10,67% por aqui.
Desemprego baixo e ‘contratação três por um’
A trajetória do desemprego mostrada pelos dados oficiais, entretanto, praticamente não se alterou. Enquanto no Brasil a taxa atingiu 12,8%, na Rússia ela não passou de 5,6%.
Isso se explica, em parte, pelo chamado “desemprego oculto”, que cresceu nesse período, diz o economista russo Victor Krasilshchikov.
Incentivadas pelo governo, as empresas reduziram as remunerações e mantiveram o volume de contratações de novos empregados.
“Elas contratam três pessoas com o salário de uma”, diz o especialista, que é chefe do grupo de pesquisa do Centro de Estudos do Desenvolvimento do Instituto Nacional de Pesquisa de Economia e Relações Internacionais (Imemo).
“Existe uma pressão política para não demitir”, concorda William Jackson, da Capital Economics, acrescentando que, além do corte nos salários, as empresas também reduzem as horas de trabalho e dão férias coletivas para evitar cortes de pessoal.
Com o aumento da inflação e a redução dos salários, contudo, a renda do trabalho vem encolhendo de forma contínua desde a crise, diminuindo o poder de compra dos russos.
“O consumo foi o que mais sentiu (os efeitos da recessão). O fardo da crise recaiu majoritariamente sobre os trabalhadores”, avalia Zouk, da Oxford Economics.
Apesar da recuperação dos preços do petróleo, que favorece a retomada da economia do país, o economista pondera a Rússia enfrenta entraves similares aos do Brasil – problemas estruturais que diminuem seu potencial de crescimento, como a baixa produtividade do trabalho, a falta de inovação e a economia relativamente fechada e pouco competitiva.
Um dos países com maior concentração de riqueza
Com 101 bilionários – contra 43 no Brasil –, a Rússia está entre os países que mais concentra riqueza no mundo, conforme o Global Wealth Report do banco Credit Suisse.
Os 10% mais ricos detêm 77,4% de toda a riqueza do país, contra 72,3% no Brasil. O economista Tony Schorrocks, um dos autores do levantamento, que há dez anos trabalha na base de dados, explica que a estimativa leva em consideração todo o patrimônio pessoal, de propriedade a ativos financeiros, descontadas as dívidas.
É diferente, por exemplo, do indicador da desigualdade de renda usado pelo Banco Mundial. Tomando essa medida, os 10% mais ricos na Rússia acumulam quase 30% dos rendimentos, enquanto no Brasil o percentual sobe para pouco mais de 40%.
“Essa é uma medida (a concentração de riqueza) importante quando se analisa, por exemplo, a mobilidade social entre as gerações e a persistência da desigualdade. Os filhos não herdam a renda do trabalho dos pais, mas o patrimônio”, ele pondera.
“Além disso, os ricos não gastam seu dinheiro só em produtos de luxo. Eles, em muitos casos, têm influência sobre a mídia e fazem grandes doações a partidos políticos”, acrescenta.
No caso da Rússia, diz o economista, a concentração seria em parte reflexo da transição do regime comunista da União Soviética, em que praticamente não havia propriedade privada, para o capitalismo.
Nas últimas décadas, um grupo pequeno de pessoas influentes explora os principais recursos do país – não por acaso, os bilionários russos no topo da lista atuam no setor de óleo e gás e na indústria do aço.
Na base da pirâmide, as estatísticas oficiais apontam que pouco mais de 13% da população do país, 20 milhões, está abaixo da linha de pobreza, estabelecida em pouco mais de 10 mil rublos (cerca de US$ 155) pelo governo.
Krasilshchikov, economista do Imemo, pondera que, se levada em conta a métrica usada pelas Nações Unidas para definir pobreza – se a família gasta mais da metade da renda para comprar alimento –, 30% dos russos seriam considerados pobres.
A pobreza é maior nas pequenas cidades rurais – onde vive um quarto da população, contra 14% no Brasil –, diz o economista, do que nos grandes centros, como Moscou e São Petersburgo.
Dostoiévski no ‘ensino médio’
Apesar da desigualdade elevada, o acesso à educação pública de qualidade na Rússia é quase universal, diz a professora Elena Vássina, que se divide entre São Paulo e Moscou.
Herança do período comunista, o programa de ensino é igual em todo o território e há boas escolas mesmo nas cidades menores. “O ensino era muito ideologizado, mas o comunismo investiu muito em educação. É uma tradição russa que vem desde o século 18”, ela ressalta.
Clássicos como Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, e Guerra e Paz, de Liev Tolstói, ela conta, são leituras obrigatórias para os jovens de 15 e 16 anos. Nos cursos de literatura nas universidades, a carga horária é três vezes maior do que na USP, por exemplo, onde Vássina leciona.
Não por acaso, o desempenho do país em avaliações como o Pisa é muito superior ao do Brasil. Tanto nos testes de leitura quanto nos de matemática, a Rússia está acima da média da OCDE, que reúne as economias mais desenvolvidas do mundo.
O Brasil segue na lanterna. É o pior em matemática e tem o terceiro pior desempenho em leitura, atrás do Peru e da Indonésia.
A austeridade fiscal de Putin
Das diferenças entre os dois países, a trajetória das contas públicas também chama atenção.
Desde meados dos anos 2000 a dívida bruta do governo está relativamente estável, e assim se manteve também durante a recessão. No Brasil, os reiterados deficits nos resultados do governo – que hoje gasta mais do que arrecada – e a trajetória de crescimento da dívida são considerados um dos maiores riscos de médio prazo para a economia.
“A austeridade fiscal na Rússia talvez venha da memória do que aconteceu nos anos 90”, afirma Jackson, da Capital Economics, referindo-se à crise da dívida russa, quando o país decretou moratória e teve de renegociar a dívida externa.
Putin manteve as torneiras fechadas durante a crise e conseguiu se reeleger neste ano mesmo com a política fiscal contracionista – ou seja, com redução do gasto público –, geralmente impopular.
“No momento atual da política na Rússia, em que Putin governa quase em um sistema autocrático, praticamente não existe oposição e inquietação social. Muitas vezes você tem que engolir e aceitar (as medidas do governo)”, diz Zouk, da Oxford Economics.