Brasil rompe com sua tradição de acolhimento humanitário

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em Projeto Colabora – 

Ao romper com o pacto sobre migrações, Brasil sinaliza sua falta de disposição para o diálogo. Contrário ao multilateralismo, Bolsonaro inicia cruzada antiglobalista

Crianças venezuelanas em Roraima. Foto de Mauro Pimentel/ AFP)
Crianças venezuelanas em Roraima: é ilusão afirma que o país é alvo de imigração indiscriminada (Foto de Mauro Pimentel/ AFP)

A pesquisa “Os perigos da percepção”, divulgada pelo Ipsos no final de 2018, mostrou que os brasileiros superestimam em 75 vezes o número de imigrantes vivendo no país. No entanto, não há evidências para embasar a tese de que o país virou alvo de uma imigração indiscriminada, o que, oficialmente, foi a explicação dada pelo governo para a saída do país do Pacto Global para a Migração das Organizações das Nações Unidas (ONU). Para cada migrante internacional no Brasil, dois brasileiros fazem o caminho inverso, e vão viver no Exterior. Ou seja, exportamos mais brasileiros do que recebemos estrangeiros no país. A guinada à direita rompe com uma tradição de décadas, que é a do acolhimento humanitário, além de deixar à deriva os compatriotas que escolheram viver fora do país.

“Ao romper com o pacto, o país sinaliza sua falta de interesse em dialogar”, analisa João Chaves, coordenador de migrações e refúgio da Defensoria Pública da União (DPU/ SP). Por não ser vinculante, nenhum dos 160 países signatários do acordo tem obrigações legais. E mais: o documento reafirma o direito soberano dos Estados de decidir quem terá acesso ou não aos seus respectivos territórios. O principal objetivo do pacto é tornar os fluxos migratórios internacionais mais seguros, e, sobretudo, ordenados.  Segundo dados da ONU, cerca de 68 milhões de pessoas, entre eles migrantes e refugiados, estão em movimento em todo o mundo.




Ao romper com o pacto, o país sinaliza sua falta de interesse em dialogar

João Chaves
coordenador de migrações e refúgio da Defensoria Pública da União

O Brasil não é um destino preferencial dos migrantes, pelo simples fato de estar muito distante dos grandes conflitos mundiais. Em seu último relatório, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) reconheceu que uma em cada 113 pessoas no planeta é solicitante de refúgio, deslocada interna ou refugiada. Os países que mais abrigaram refugiados no mundo nos últimos anos, segundo o próprio Acnur, foram a Turquia (2,9 milhões), o Paquistão (1,4 milhão) e o Líbano (1 milhão). No caso brasileiro, os venezuelanos lideram a lista de solicitação de refúgio, seguido de Cuba, Haiti e Angola. Em 2017, o Brasil reconheceu 587 refugiados, a maior concentração deles na faixa dos 30 aos 59 anos.  Nos últimos sete anos, o Brasil reconheceu, segundo dados da Polícia Federal, 162,1 mil refugiados.

Ao romper com o pacto, o Brasil vai perder protagonismo nas relações internacionais

João Jarocinski
coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR)

“Ao romper com o pacto, o Brasil vai perder protagonismo nas relações internacionais”, alerta João Jarocinski, professor e coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), estado que virou o destino de nove entre 10 venezuelanos que chegam ao país. Ele atua em parceria com o Acnur na única unidade no país a oferecer serviços jurídicos, sociais e culturais aos estrangeiros, o Centro de Referência para Refugiados e Migrantes em Roraima. Não bastasse perder o protagonismo, a decisão do presidente pode deixar sem assistência brasileiros que vivem lá fora.

Jarocinski está convencido de que uma postura hostil a migrantes pode incentivar restrições ainda maiores aos brasileiros lá fora. Em 2018, segundo a Frontex, agência de fronteiras europeias, computou um aumento de 50% no número de brasileiros impedidos de entrar na Europa. Um total de  2.225 cidadãos brasileiros foram parrados entre janeiro e junho do ano passado. Ainda segundo a Frontex, o Brasil ocupa a nona posição entre as nacionalidades mais afetadas com a recusa de entrar na Comunidade Europeia.

“A saída do pacto é uma falácia”, critica Kai Michael Kenkel, professor de Relações Internacionais da PUC/Rio, para quem a decisão vai impactar negativamente muitos daqueles que, por morarem no exterior, votaram no candidato do PSL.

A decisão de romper com o pacto foi comunicada à ONU, por telegrama, uma semana depois de Jair Bolsonaro assumir à presidência. Não foi uma surpresa para a comunidade internacional. Antes mesmo de ser empossado, o chanceler Ernesto Araújo já havia sinalizado que a postura do Brasil iria mudar, aproximando o país de nações como Estados Unidos, Hungria, Itália e Polônia – países que, a exemplo do Brasil, abraçaram a ideia de que o mundo ocidental está sob o domínio do mal, ou melhor, do “marxismo cultural”. Uma das missões do novo ministro das Relações Exteriores é o de “liberar o Itamaraty” desse tal “marxismo cultural” e, assim, imprimir uma nova roupagem na diplomacia brasileira.

Por anos e anos, o Brasil exerceu sua diplomacia adotando o conceito do “soft power” (poder “suave”, numa tradução literal). No lugar de usar seu poder militar, que é pouco ou quase nada, ou de coerção, o Brasil vinha atuando lançando mão do seu poder de inspirar. Bolsonaro decretou o fim do “soft power” – conceito criado por Joseph Nye, há 15 anos, ao lançar o livro, o “Soft Power: The Means to Success in World Politics” (Soft Power, os meios para o sucesso na política internacional, numa tradução literal) – e adotou o “hard power” na relações internacionais.

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