Por Marcelo Auler em
Ela tem apenas 25 anos. Argentina por naturalidade, é também cidadã brasileira como sua mãe, a assistente social e ex-professora universitária Marisa Barcellos.
Na sexta-feira, segundo canais de TV argentinos, Damiana Negrim Barcellos, que trabalha na produção de cinema e estuda artes visuais no Instituto Universitário Nacional del Arte – IUNA, a transformou em “personagem do dia”.
Tudo por conta da selvageria dos gendarmes (força federal argentina, misto de polícia e militar) que a prenderam às 19H00 da quinta-feira (14/12), quando 300 mil argentinos ocuparam as ruas em torno do Congresso Nacional, em Buenos Aires. Protestavam contra a reforma das “pensões” que, como no Brasil, dificultará a aposentadoria dos trabalhadores.
As manifestações públicas na Argentina impediram que os governistas que apoiam o presidente Maurício Macri avançassem em seus propósitos reformistas. Até quando, ninguém arrisca prever. A votação foi remarcada para segunda-feira.
Mesmo sem estar no protesto – ela voltava para casa – ao ser pega, Damiana viu-se acusada de provocar os gendarmes. Segundo o jornal Pàgina12, ocorreu com mais quatro dos 44 presos na marcha: dois que passavam pelo local; outros dois, moradores de rua.
O fato de ela não estar na manifestação é apenas um detalhe. Na verdade, como descreveu Marisa na manhã deste sábado ao Blog enquanto a filha dormia após 24 horas de violências e tensão, “participamos das manifestações, pois a julgamos justas e necessárias. Mas, casualmente ela não estava na manifestação“.
Ainda assim, a estudante de artes visuais passou quase 24 horas na Gendarmerie, após ser “golpeada e manuseada por um policiais“.
Sua prisão se deu a 200 metros do Congresso Nacional, na esquina da Calle Callao com Bartolé Mitre, no centro de Buenos Aires.
Um transeunte filmou a cena. Segundo a mãe, ao ser empurrada, caiu sobre uma moto. Uma moça tentou ajudá-la, mas os gendarmes a agarraram e levaram-na forçosamente.
O vídeo circulou pelas redes sociais e a transformou, como disse um canal de TV argentino, na sexta-feira (15/12) após ser solta às 14H00, “na personagem do dia de Buenos Aires”.
“A condição da prisão dela foi muito violenta – basta ver o vídeo – por ele se vê que foi extremamente… em condições absolutamente violentas“, desabafou a mãe ao falar ao Blog. Acrescentou:
“Ela foi confundida por uma caçada demente contra todas as pessoas… Uma coisa demente que estava acontecendo, não tinha nenhum tipo de racionalidade. Era apenas violência. Violência contra o povo trabalhador e o povo manifestante”.
Presa, foi levada para uma unidade da Gendarmerie. Assim como outras treze pessoas. Algo considerado inusitado. “No momento em que nós começamos a falar com os organismos de Direitos Humanos, eles diziam ‘na gendarmerie não pode ser porque não é um lugar de prisão‘. Ninguém acreditava que havia um grupo de prisioneiros ali“.
Com 63 anos, a capixaba Marisa vive há 31 na Argentina. É casada com o professor universitário uruguaio Hugo Negrim. Mas continua ligada ao que acontece à sua terra natal e tem seu posicionamento crítico:
“Acompanho o que está acontecendo no Brasil. No Estado de Direito Democrático estas ações contra o povo e as pessoas são totalmente irregulares“, diz.
Na sua análise, as populações dos dois países passam pelas mesmas dificuldades:
“São os mesmos. Os ataques são todos os mesmos. Os ataques vêm do mundo capitalista. Os ataques são centrais. Os ataques visam reformas que são sempre contra o povo trabalhador, para diminuir a capacidade de viver bem. Para cortar benefícios, que não são benefícios por doação, mas benefícios de direitos dos cidadãos.
Aqui a gente teve uma década onde o FMI não mandava no país. E nós voltamos ao tempo do FMI influenciar nas políticas do país. É a demanda do mundo capitalista com relação à sua expansão e à sua dominação”.
Apesar de Brasil e Argentina viverem os mesmos problemas de supressão de direitos e estarem tendo reações distinta – basta equiparar a marcha de quinta-feira com as manifestações dos brasileiros -, Marisa evita estas comparações:
“As nossas histórias (do Brasil e da Argentina) são diferentes. Então, não são comparáveis. Eu não posso comparar, dizer que o brasileiro não luta e o argentino luta. Não. São formas distintas de manifestação e de reagir contra atos que tendem a ser contra os direitos do povo.
Os argentinos ainda possuem esta força de sair, de enfrentar. A História que nós vivemos (na Argentina) transformou o mês de dezembro em “dezembro de fúria”. É uma época muito importante para a situação das diferenças sociais. No caso Argentino, ainda se tem algum poder de luta, de manifestação, de sair na rua, muito, muito forte”.
Não só na hora de ir à rua os argentinos mostram diferenças com relação aos vizinhos brasileiros. Lá, como lembra Marisa, as pessoas ainda se indignam. Mesmo sem querer fazer comparações, ela acaba realçando-as:
“Graças a Deus, aqui na Argentina, ainda isso (a violência contra a filha e sua prisão) causa estarrecimento. Ninguém está de acordo com isso. Estava todo mundo assombrado vendo isso e se perguntando: Como? Como? Como? Como pode ser isso? Isto ainda é o lado bom do povo. Não se tornou uma coisa natural. A gente não acha que isso é normal. Isso não é normal”.
Damiana ficou quase 24H00 presa. Alguns momentos incomunicáveis. Depois esteve com o advogado por duas vezes, assim como com sua mãe. Ao ser libertada soube que terá uma “causa federal” (um processo) e por conta dele não pode sair do país. Por orientação do advogado, evita falar com a imprensa.
A família também decidiu tirar o sábado para refletir.”Nossa decisão é de não sair a falar hoje (sábado) porque a gente pode falar besteira. A situação é muito recente. Hoje é um dia que iremos ficar tranquilos, pensando e nos recuperando dessas 24 horas de violência”, explicou Marisa.
Na Gendarmerie, recebeu também a visita da presidente da Fundação das Mães da Plaza de Maio, Hebe de Bonafini. Durante a conversa, provocou imenso orgulho em seus pais, como confessou a mãe.
Mesmo agradecendo a solidariedade de Hebe, a preocupação da jovem foi outra. Com companheiros de infortúnio na prisão que não tinham qualquer parente ou amigos aos quais pudessem recorrer:
“Ela ontem (sexta-feira) foi de uma dignidade total. Eu entrei no momento em que ela foi visitada pela presidente da Fundação das Mães da Plaza de Maio, Hebe de Bonafini, e ela falou: ‘Hebe, eu tenho mamãe e papai. Mas tem duas pessoas aqui que foram presas e não têm ninguém no mundo. Por favor, cuida dessas pessoas’
As duas pessoas foram soltas. Marisa, como mãe, depois de todo o susto, não escondeu o orgulho:
“Se você escuta isso de um filho, você fica orgulhoso, porque alguma coisa a gente está ensinando.”
Paralelamente ao drama pessoal de Damiana, na Argentina as forças sindicais continuam se mobilizando para impedir ao pacote que afetará as “pensões”, como se constata no vídeo abaixo:
Tocador de vídeo
(*) Nosso agradecimento público ao casal Ângela e Roberto Cheib, de Vitória (ES) que nos proporcionou o contato com Marisa Barcellos.