Por Maíra Streit, compartilhado de Projeto Colabora –
Entre 2008 e 2018, mulheres oriundas do Brasil representaram 25% das vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual em Portugal
Na internet, um anúncio de trabalho chamou a atenção de Maria*. A promessa de rendimentos altos fez com que decidisse arrumar as malas em busca de uma nova vida em Portugal. Juntou as economias, comprou a passagem e partiu para aquela que considerava uma oportunidade única. A futura patroa deu todo o apoio necessário para a mudança, mas não demorou até mostrar suas verdadeiras intenções.
Desde muito jovem, Maria viu na prostituição um meio de subsistência. Desempregada e vinda de uma família simples do Espírito Santo, era dessa forma que conseguia se manter. A possibilidade de exercer a atividade na Europa parecia, para ela, dar finalmente adeus às dificuldades financeiras. No entanto, a situação virou um pesadelo.
Passou a atuar em um apartamento pequeno e insalubre na região de Amadora, na Grande Lisboa. Ao chegar, encontrou o local sujo, com móveis velhos e um cheiro forte de esgoto. Quando a porta foi trancada pela primeira vez, já não era mais uma mulher livre. Tinha se tornado prisioneira e vítima do tráfico de pessoas.
A rotina exaustiva chegava a ter até 20 atendimentos em um só dia. “Começou a mandar qualquer tipo [de cliente] e disse: ‘Para ganhar dinheiro, tem que trabalhar 24 horas. Não tem horário para dormir. Quando eu bater ou ligar, tem que levantar e fazer [programa]’”, conta. As raras saídas de casa eram todas vigiadas. A marmita que precisava dividir com uma amiga no almoço volta e meia estragava porque, sem geladeira, era guardada em uma gaveta.
Com condições precárias de higiene, Maria vivia doente. As infecções eram frequentes, mas isso não queria dizer que teria algum descanso. “Falei que não estava mais aguentando porque estava com muita dor ali embaixo. E ela respondeu: ‘Seu médico é isso aqui. Começa a beber. O que vai fazer você aguentar é o vinho. Não pode ir ao médico de verdade porque ele vai perguntar por que você está assim. E eu queimando de febre’”, relembra.
A opressão só chegou ao fim quando a quadrilha foi descoberta por uma operação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), órgão de segurança ligado ao Ministério da Administração Interna, que, entre outras funções, combate as redes de tráfico de seres humanos em Portugal. Os envolvidos acabaram presos, e Maria foi encaminhada para um abrigo temporário.
O trauma, porém, permaneceu. As noites continuaram insones. Ela ouvia o telefone – mesmo desligado – tocar sem parar, e o medo das ameaças mantinha a mente em alerta constante. Somente o reencontro com os parentes fez com que se sentisse a salvo. “Eu fiquei tão feia, tão feia, que quando cheguei ao Brasil minha mãe nem me reconheceu. Parece que, em alguns meses, eu envelheci trinta anos”, afirma. “Não sei o que seria se a polícia não tivesse batido lá. Já chorei tanto, já fiquei tão mal que agora falar já me dá até um alívio”, completa.
Cláudio Ribeiro, inspetor do SEF que participou da liberação de Maria no cativeiro, reforça que o fato de mulheres chegarem ao país para a prostituição não justifica o tratamento desumano a que muitas são submetidas. “Uma coisa é virem para prestar serviços sexuais. Outra coisa é quando [os aliciadores] ficam com os passaportes, não deixam sair de casa. Ninguém obviamente combina de vir em uma situação dessas”, observa.
O inspetor explica que também é comum que as vítimas sejam enganadas e achem que irão trabalhar em outros setores, como o de limpeza, mas acabam capturadas pelos bandidos. Ilegais e com os documentos retidos, há o receio de buscar as autoridades. Segundo Ribeiro, a internet é o meio mais usado para contato e as condições combinadas no início sobre moradia, alimentação e ganhos atraentes são, no geral, bem distantes da realidade.
Alvos de redes criminosas
Dados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH) revelam que, entre 2008 e 2018, 92,7% das vítimas para fins de exploração sexual em terras lusitanas eram estrangeiras. Uma a cada quatro identificadas nessa condição tinha origem no Brasil. “Numa análise sobre o total de vítimas confirmadas por este tipo de exploração, 25,2% são de nacionalidade brasileira, seguidas por Romênia e Nigéria como as três nacionalidades estatisticamente mais representativas”, explica Rita Penedo, diretora do OTSH. No ano de 2009, esse índice chegou a 40%, conforme levantamento realizado pela organização.
Segundo o OTSH, o tráfico de pessoas gera no mundo um impacto econômico comparável ao tráfico de drogas e de armas. O fenômeno afeta sobretudo grupos mais vulneráveis, como mulheres e crianças, e envolve um conjunto de violações, incluindo a exploração sexual, laboral, mendicidade forçada, escravidão e extração de órgãos. A atividade é realizada geralmente mediante rapto, ameaça e violência física.
Esse é um cenário que Paula* infelizmente conhece bem. “Tirando morte, já vi de tudo”, sentencia. Antes casada, a goiana diz que não trabalhava por proibição do marido. Cuidava apenas das tarefas domésticas. Cansada da rotina que levava, resolveu partir para Portugal há mais de uma década, após uma temporada na Espanha.
Aos 46 anos, ela hoje atua de forma autônoma, em sua própria casa, mas lembra com pesar dos momentos em que andava em clubes noturnos na região de Algés. Ela conta que, a cada vez que precisava sair do estabelecimento, era cobrada uma multa de 50 euros. “Se não pagasse, não saía. Prendiam mesmo. Quando passava mal, tinha que ficar no salão. Não me deixavam dormir. Aí peguei as minhas coisas, fui embora e não voltei mais”, recorda.
Ao conseguir se desvencilhar dos exploradores, Paula se tornou uma espécie de protetora de outras mulheres que sofriam abusos. Ajudou uma amiga a fugir e a acolheu por três meses até que arranjasse um novo lar. “Era uma brasileira que foi enganada. Prometeram que ela ia trabalhar em restaurante e depois passou a viver nesse clube. Era uma complicação. Não podia falar com ninguém. Uma vez, deram uns empurrões nela, chutaram as malas, diziam que iam pôr fogo. Colocaram para fora, tipo cachorro. Já bateram nas meninas quando não rendiam dinheiro. Eu ficava com dó”, relata.
Já Carla*, do interior de Minas Gerais, ouviu tantas histórias de violência que sempre rejeita qualquer proposta de aliciamento. No Brasil, era professora do ensino infantil e decidiu cruzar o Atlântico há dois anos para fazer uma reserva de dinheiro. Depois de estar como turista por um tempo, decidiu ficar.
Guarda quase tudo o que ganha com a prostituição, na esperança de quitar as parcelas de um apartamento financiado ao regressar. “Lá eu trabalhava em uma coisa melhor. Porém, o dinheiro era contado. Morava com a minha filha e, durante o mês, às vezes nem dava”, lamenta. Em uma tentativa de permanecer em segurança, atende somente durante o dia, de segunda a sexta, em um apartamento que aluga com uma prima. Prefere a discrição e acredita que o fato de não beber, não usar drogas e ter uma personalidade tranquila conta pontos a seu favor.
No quarto onde recebe os clientes, mantém a imagem de Nossa Senhora de Fátima, como forma de proteção. “Já me contaram casos de meninas que vieram com a passagem comprada, seguravam o passaporte, e elas não conseguiam voltar. Já tive ligação de homens que queriam que eu trabalhasse para eles. Aí eu falo: ‘não me interessa‘. Teve um que disse que, se eu não fosse, mandaria a polícia no apartamento. Queria me colocar medo”, afirma.