Brasileiro jogou com Pelé, virou italiano e venceu Mundial

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Por Gustavo Mayrink, Folha de S. Paulo

Brasileiro jogou com Pelé, virou italiano e venceu Mundial Sobrinho lembra feitos de Sormani, 80, que começou no Santos e defendeu a Itália




Toda infância é moldada por heróis reais e imaginários com seus incríveis uniformes e superpoderes. Além dos uniformes, meu herói usava chuteiras, golpeava com as duas pernas e encampava batalhas ao lado de um rei. Não tinha capa, mas atravessava continentes para dominar arenas e conquistar o mundo. Sua saga, porém, é praticamente desconhecida.

Angelo Benedicto Sormani, meu tio herói, acaba de completar 80 anos. Nasceu em Jaú, interior de São Paulo, com nome de santo e sina de bola. A chegada à Itália foi festiva. Entrar em um time que era chamado de “Piccolo Brasile” (“pequeno Brasil”) pelo estilo de jogo prodigioso soou como música e em pouco tempo o atacante jauense estava adaptado e anotando gols. Como tinha dupla cidadania, o convite para defender a seleção italiana transformou a casa nova em pátria.

Trocou a camisa amarela pela azul da Itália. Começava um extenso intercâmbio de viagens e emoções na família Sormani. Uma jornada que envolveu desde tráfico de comida até visitas clandestinas ao Vaticano. Essas operações eram lideradas pela intrépida Antonietta Gobbi Sormani, a vó Eta, matriarca da família que comandava o esquema diretamente da base de Jaú e era a grande “parça”.

Em uma de suas missões, chegou a transportar uma leitoa congelada para a ceia de natal italiana, mas o voo atrasou e a mala de couro começou a suar em pleno saguão do aeroporto. Avó e leitoa chegaram bem. Sormani carimbou o novo passaporte em grande estilo indo para o Chile disputar a Copa de 1962. A Itália foi eliminada na primeira fase, enquanto o Brasil foi bicampeão mundial.

Quis o destino, esse gozador, que no ano seguinte as duas seleções se enfrentassem em um amistoso em Milão e meu tio marcasse o primeiro gol na vitória italiana por 3 a 0. Após a partida, foi ofendido por um dirigente brasileiro com gritos de “moleque” e “traidor da pátria”. Ainda em 1963, a Roma fez uma oferta recorde de 500 milhões de liras (aproximadamente 5 milhões de libras, equivalente a 23,65 milhões de reais, em valores corrigidos) para levar o ítalo-brasileiro, maior transação futebolística até então.

Cercada de expectativas, a mudança para a capital italiana foi conturbada. Ganhando muito, jogando fora de posição e deixando o artilheiro do time no banco, Sormani foi boicotado por parte do elenco romano. A torcida engrossou o coro e começou a chamá-lo malevolamente de “Mister Mezzo Miliardo” (Senhor Meio-bilhão), provocação que no Brasil possivelmente viraria “O Quinhentinho”.

Sem ambiente, foi emprestado à Sampdoria na temporada seguinte, mas o jogo permanecia truncado. Uma hérnia de disco que o perseguia há anos precisou ser operada e houve quem apostasse no fim da linha. Tratado com desconfiança pela imprensa italiana, Sormani chegou ao Milan em 1965 para aqueles que seriam os melhores anos de sua carreira.

Pelo rossonero ganhou a Copa da Itália (1966/1967), o Campeonato Italiano (1967/1968) e a Liga dos Campeões da UEFA (1968/1969) quando o Milan bateu o Ajax (HOL) de Rinus Michels e Johan Cruyff por 4 a 1 em Madri e se credenciou para a final do Mundial Interclubes de 1969, uma decisão marcada por sangue, suor e lágrimas.

No primeiro jogo, em Milão, Sormani foi o homem da partida ao fazer dois gols na vitória de 3 a 0 sobre o Estudiantes (ARG). O confronto de volta em Buenos Aires seria lembrado como um dos mais brutais da história, com pancadaria desenfreada por parte dos argentinos (meu tio deve ter apanhado em dobro por ser brasileiro e italiano), jogador preso acusado de deserção e um saldo de violência que levou os principais clubes europeus a boicotar o torneio nos anos seguintes.

Os argentinos ganharam no tapa e na bola, mas o 2 a 1 não bastou para impedir o primeiro título mundial do Milan. A volta para a Itália foi triunfal. Tratados como heróis nacionais, foram recebidos pelo Papa Paulo VI que saudou o elenco milanês ao lado da única intrusa na delegação. Bendita Antonietta.

Meu tio ainda jogaria pelo Napoli, onde fez dupla de ataque com Mazzola, outro oriundi, Fiorentina e Vicenza, até encerrar a carreira. Àquela altura, a casa da minha avó em Jaú já se tornara um memorial carregado de histórias fantásticas, troféus, fotografias, além de uma bola oficial da Copa do Mundo de 1962 que meus primos e eu surrupiávamos para jogar escondido na rua. Vestíamos camisas de times italianos que caíam como capas imaginárias de um herói que parecia exclusivamente nosso.

Gustavo Mayrink é publicitário, jornalista e sobrinho do ex-jogador Sormani

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