Por Lauro Neto, compartilhado de Sputnik News –
Ao menos cinco instituições de ensino de Lisboa e o Centro de Acolhimento de Refugiados amanheceram pichados na sexta-feira (30) com mensagens racistas e xenófobas. Frases como “Fora com os pretos!” e “Zucas, voltem para as favelas!” foram apagadas por funcionários e estudantes.
Mas a pintura nova das fachadas não esconde as manchas por trás dos números de denúncias por discriminação étnica e racial, que crescem ano após ano em Portugal. Dados do último Relatório Anual sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica, referentes a 2019, mostram um aumento de 26% no número de queixas em relação ao ano anterior. Desde o primeiro relatório elaborado pela Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), em 2014, o crescimento foi superior a sete vezes.
De acordo com o último relatório, dentre as queixas recebidas pela CICDR em 2019, a expressão que mais se destaca como motivo da discriminação é a pertença à “etnia cigana” com 19,3%, sendo seguida pelas expressões “cor da pele negra/preto(a)/negro(a)/raça negra” (17,7%) e “nacionalidade brasileira” (17%).
Negros e brasileiros aparecem como alvos das pichações registradas na Escola Secundária da Portela: “Portugal é branco. Pretos, voltem para África. Zucas, voltem para as favelas! Não vos queremos aqui!”. A última frase faz referência aos brazucas, forma como os brasileiros são chamados por portugueses.
Questionada pela Sputnik Brasil se está acompanhando as medidas tomadas para identificar e responsabilizar os autores das pichações, a Embaixada do Brasil em Lisboa informou que segue acompanhando o assunto com a devida atenção.
“A Embaixada do Brasil recebeu com consternação a notícia de pichações de natureza racista nas instalações de estabelecimentos educacionais em Lisboa, algumas delas com alusões pejorativas a nacionais brasileiros. A Embaixada considera essas demonstrações de racismo e intolerância absolutamente inaceitáveis. Ciente de que elas não correspondem aos sentimentos de respeito e amizade da esmagadora maioria de nossos irmãos portugueses, a Embaixada manifesta sua certeza de que as autoridades competentes assim como os responsáveis pelas instituições de ensino envolvidas saberão tomar as medidas necessárias para denunciar e coibir tais atos”, lê-se na nota.
Não é a primeira vez, contudo, que brasileiros são alvos de manifestações xenófobas em ambientes educacionais portugueses. Em abril de 2019, uma caixa de madeira com pedras foi colocada em um corredor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com um cartaz em que se lia: “Grátis se for para atirar em um ‘zuca’ (que passou na frente no mestrado)”.
Os brasileiros compõem o maior número de estudantes estrangeiros em instituições de ensino superior de Portugal. Segundo os últimos dados, do primeiro semestre deste ano, havia 17.300 estudantes brasileiros inscritos em licenciaturas ou cursos de pós-graduação, de um total de 58.350 universitários estrangeiros. O segundo país com mais matriculados é Cabo Verde (4401).
A brasileira Maria Isabel Carneiro, que mora no Porto, relata que já foi vítima de preconceito por parte de professoras quando cursava uma pós-graduação em Marketing Digital em uma faculdade local, cujo nome ela prefere não citar. Devido ao episódio traumático, ela acabou desistindo do curso:
“Na faculdade, uma professora me disse que eu tinha que aprender a escrever o português daqui ou ela não ia ler mais meus trabalhos. A reitora discutiu comigo porque não a escolhi como orientadora e disse que nunca conheceu ninguém tão estúpido”, contou Maria Isabel à Sputnik Brasil.
Professor do ISCTE insinuou a aluno que negros seriam menos inteligentes
Os números do Relatório Anual sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica ganharam maior contorno e expressividade em pichações como “Morte aos pretos! Por uma faculdade branca”, grafitadas numa parede do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Nascido em Angola e filho de pais angolanos, Eliézer Carvalho já estava em sala para uma aula do mestrado em Arquitetura quando soube das mensagens racistas, informado por uma amiga. Pediu que ela tirasse fotos e as postou no Twitter.
“Acho que é uma vergonha. Uma mensagem tão forte como essas ser escrita numa instituição que defende a cultura e o conhecimento é 100% reprovável. Leva-me a pensar se são de fato alunos do ISCTE que pensam assim ou se foram apenas pessoas de fora que o fizeram”, disse Carvalho ao Sputnik Brasil.
Questionado se já foi vítima de racismo ou xenofobia dentro da universidade, ainda que de forma velada, Carvalho relativiza e diz que não é o tipo de pessoa que se foca nisso. Após hesitar, afirma que, de forma indireta, talvez. Cita exemplos de “piadas” proferidas por colegas, como dizer que não é possível enxergá-lo quando está escuro e que ele é mais assustador. Até que puxa pela memória e revela um comentário de um professor.
“Lembro-me de um professor comentar que eu não era uma ‘tábua’, visto que os negros são conhecidos por ser menos inteligentes na experiência do professor. Ele nunca me discriminou, sempre gostou de mim e tivemos uma boa relação, apenas ficou surpreso por eu mostrar ser ‘mais inteligente’ que os antigos alunos negros que ele teve. Achei estranho, apenas”, acredita Carvalho.
Mas o que mais magoou o universitário de 22 anos não foi este episódio nem as mensagens racistas nas pichações, mas a forma como o ISCTE decidiu gerir a situação. Segundo ele, durante uma troca de e-mails entre uma aluna e integrantes da reitoria da universidade, a reitora teria defendido que “não era necessária nenhuma mensagem de reprovação a estes atos em nome do ISCTE”.
“Acho lamentável que ela pense assim. Percebo que não queira fazer um alarido, mas acho que haveria uma forma de trazer segurança para os alunos, tanto negros como outros que se sensibilizam com o acontecimento. Mandou limpar a parede apenas”, ele conclui.
Por duas vezes, Sputnik Brasil solicitou à reitora Maria de Lurdes Rodrigues um posicionamento oficial sobre quais medidas seriam tomadas além de apagar as pichações e sobre as queixas de Eliézer Carvalho. Em nota enviada à Sputnik, a instituição se manifestou pela primeira vez sobre o caso comunicando que, assim que a reitoria do ISCTE teve conhecimento de uma inscrição nos muros do Campus, tomou as seguintes decisões: mandar limpar de imediato o muro; investigar se a autoria da inscrição teria qualquer ligação à comunidade ISCTE (o que se comprovou não acontecer); informar as autoridades do sucedido; e reforçar as ações de vigilância do Campus.
“O ISCTE, enquanto entidade pública, reafirma que se orienta pelos princípios constitucionais da democracia, da pluralidade, da inclusão e da liberdade de expressão, repudiando em qualquer circunstância atos que apelem ao ódio, ao racismo e à discriminação, não podendo, por isso, admitir que nas suas instalações sejam passadas mensagens semelhantes à que, no passado dia 30 de outubro, foi mandada apagar de imediato, com o objetivo de impedir a sua propagação”, lê-se na nota enviada à Sputnik Brasil.
Jovens do Bloco de Esquerda promovem ato com faixa antirracista
No sábado, um grupo de Jovens do Bloco de Esquerda fez um ato antirracista em frente ao ISCTE, pintando uma faixa em que se lia a frase “Universidade anti-racista”. A manifestação contou com a participação da deputada bloquista Beatriz Dias. Foi uma ação simbólica de repúdio às ações que ocorreram, com pichagens (pichações) racistas. “A cidade de Lisboa é antirracista, e nós afirmamos isso, inequivocamente, com a faixa que nós pintamos”, disse Beatriz em um vídeo.
Já a reitora da Universidade Católica Portuguesa (UCP), Isabela Capeloa Gil, informou, em nota no site da instituição, que a universidade procedeu a uma denúncia junto ao Ministério Público após as pichações com dizeres como “Viva a Europa branca” e “Fora com os pretos!”.
“A UCP foi hoje alvo de uma ação de vandalismo com dizeres discriminatórios, cometida por desconhecidos, nas suas instalações em Lisboa. A universidade rejeita este ato, que atenta contra os princípios basilares do que a universidade enquanto espaço de abertura e diálogo representa e reafirma que continuará, firmemente, a desenvolver a sua ação educativa assente no respeito pela dignidade da pessoa, nos valores da liberdade e do diálogo, rejeitando qualquer forma de discriminação social, de raça ou sexo, e pugnando sempre pela inclusão e coesão sociais em prol do bem comum da sociedade. Pelo conteúdo dos dizeres, este é um crime público, tendo, por isso, a universidade procedido a uma denúncia junto do Ministério Público”, lê-se na nota da UCP.
Além das universidades, as escolas secundárias da Portela, dos Olivais e de Sacavém também foram alvo de pichações racistas e xenófobas. Foi a segunda vez este ano que elas foram grafitadas com mensagens tais quais “Morte ao ciganos” e “Portugueses, digam sim ao racismo”, como conta a estudante Iara Sobral à Sputnik Brasil.
“É nojento e vergonhoso, seja qual for a parede ou instituição, mas numa escola pública, periférica e com uma população estudantil tão multicultural como é a Secundária de Sacavém, é ainda pior. Gerou um sentimento de impotência e revolta entre os alunos. Infelizmente, é o reflexo do racismo que está impregnado na sociedade portuguesa, e que o currículo escolar perpetua, pois o mesmo é ainda bastante colonial”.