Mais um capítulo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. César que nos envia ao passado de velha amizade escolar nesta crônica que remete a Vinicius de Moraes no “Soneto do Amigo”, quando diz “Enfim, depois de tanto erro passado / Tantas retaliações, tanto perigo / Eis que ressurge noutro o velho amigo / Nunca perdido, sempre reencontrado.”
“Mas, vejam só, aquele ali sentado na calçada não era o Balão, amigo de infância e irmão do primeiro amor do Bucco*, o que vive de bicos? Por um instante, o mundo da rotina deu cambalhotas para trás e se descortinaram imagens felizes da infância. Muitas, decerto.
Bucco fez logo o favor de saltar da bicicleta para cumprimentar o velho amigo. Sim, ambos estavam mais velhos, velhíssimos, mas mortos não. Saíram-lhe da boca palavras gentis, mas o homem de pele escura não as respondeu. Sequer esboçou reação. Será que não o reconhecia mais?
Fosse como fosse, Balão, apelido de Otaviano, continuava sentadinho na calçada como se não estivesse nem aí, como se estivesse a contemplar o mar, o infinito. Só que na rua, as ondas seriam os veículos e os transeuntes.
Bucco não se fez de rogado, não era um contratempo de pequena monta como aquele que iria desanimá-lo. Não quis nem o sacudir como fazia quando eram miúdos. Funcionava bastante aquela velha imitação de voz metálica ordenando que o astronauta voltasse para a terra, mas não era o momento de se lançar mão de velhos artifícios. A ocasião exigia menos sobressaltos. Tinha que ser no pouco a pouco.
Além do mais, a brincadeira poderia naquele momento encabular o amigo, o velho companheiro de peripécias em sala de aula.
Bucco apenas se sentou ao lado dele como quem esperasse a abertura de diálogo sem resposta, mais ou menos como algumas pessoas às claras ou às escondidas fazem com as estátuas (A estátua de Carlos Drummond de Andrade meio de costas para o mar de Copacabana, no Rio de Janeiro, decerto já ouviu muitas estórias do tipo e feliz ou infelizmente não as contou para ninguém).
Bucco foi contando uma versão mais enxuta da história de sua vida ao amigo. Falou da mulher e dos filhos, de como as coisas mudaram, da saudade que tinha da infância perdida, das traquinagens de uns e outros, das brincadeiras, das broncas, das notas, dos boletins.
Bucco tinha sido um excelente aluno, aprendia rápido o suficiente para ter tempo de reinar e ajudar os amigos em mais dificuldade, como era o caso (perdido, para a professora do educandário) do senhor Otaviano, vulgo Balão. Ora, mas não foi o mesmo Otaviano que certa vez perguntou à professora por que ela ainda perdia tempo com alunos como ele próprio?
Nossa, o Bucco ainda se lembrava da cara de espanto da professora que, quase tendo engasgado, não conseguiu dar uma resposta à altura a uma pergunta relativamente simples. Ela ficou vermelha, deu para ver, seus óculos quase saíram da cara. Talvez para ela a pergunta soasse como afronta, desrespeito grave ou coisa que o valha, passível de punição.
Mas a Bucco nunca pareceu ter sido de troça a intenção de Balão, quer dizer, de Otaviano. Na verdade, parecia que esta pergunta, tola que fosse, vinha do fundo de um coração onde há, apesar de tudo, uma incorruptível inocência.
Quer dizer, de pés no chão, fazia anos que Bucco não pensava em nada disso, afinal ele tinha mais com que se ocupar do que com as vivencias da mais tenra infância. Entretanto, é sabido, basta um fiapo de corda de recordação para a gente puxar fio a fio uma cena inteira com início, meio e fim. Não que a cena corresponda à mais fidedigna expressão do que ocorreu, não é isso. Às vezes cabem algumas alterações aqui e ali para ajustar melhor as coisas.
Bucco seguia a falação entre uma interrupção e outra para retomar o fôlego. Falava pelos cotovelos e respondia de acordo, rindo pelos dois. Conscientemente ele evitava fazer qualquer menção que fosse a ela, a Belinha, ao seu primeiro grande amor, que se transformou em Balinha em decorrência da justeza do apelido do irmão. Afinal, quem vive no mundo da lua só pode ser mesmo chamado de balão.
O medo da reação da esposa em casa, digamos, talvez fosse maior que a curiosidade que se tinha em saber qual era o paradeiro dela. É por isso que, no calor da hora, para não ser traído pelo que escapa ao controle, o que agora vive de bicos só se referiu ao amigo pelo nome de batismo. Só o chamando de Otaviano, comedidamente talvez estivesse livre das armadilhas do inconsciente e não diria nomes tais como “Belão” ou “Balinho”.
É, e tem mais! Também não era de bom tom dizer que enquanto Bucco ia passando de ano, por vezes com mérito, por vezes sem honra nenhuma, apenas sendo empurrado para frente, o amigo ia ficando para trás. De repetência em repetência, com o apelido consolidado, era difícil não perceber que o senhor Otaviano tinha graves problemas de aprendizagem com os quais a escola não estava nem de longe preparada.
Por fora, Otaviano estava bem enturmado, vivia; mas, por dentro, não era. Já pelas tantas, destoava bastante aquele menino moreno cumprido em uma sala de crianças. Belinha também o passou depressa, mesmo mantendo firme desinteresse pela escola. E ela não gostava nada de ser chamada de Balinha, o que contribuiu bastante para que o apelido pegasse, como é comum nestes casos.
Isso para não dizer que mesmo a escola onde estudaram não estava mais de pé, pois teve que ceder o lugar para a passagem de uma autoestrada que, segundo disseram, levaria toda aquela região em direção ao mais inevitável progresso. Viria outra escola, maior, maior, mais sintonizada com as atualidades.
Mentira, mentira. Pior do que pouco estudo só mesmo não ter estudo nenhum. Era por isso que Bucco cobrava de seus filhos: que eles dessem o melhor durante as aulas. Por vezes, era até ríspido, algo difícil, incompatível com seu temperamento.
Para a surpresa de todos, Bucco viu surgir na calçada onde estava sentado uma mulher morena com dois filhos e mais uma barriga de seis meses. Era ela, Belinha. Bucco suou frio por dentro, pigarreou, se preparou para exibir o gestual de surpresa mais natural do mundo em seu parco repertório dramático. Preparou-se.
Falaram um pouco, é claro, de amenidades. Ela era ainda muito bonita, no seu inconfundível tom de pele. Enquanto conversavam, Bucco não sabia mais se deveria empurrar a barriga para dentro a fim de retornar à magreza de outrora ou se a deixava à mostra para mostra que ainda era bom de garfo.
Estava ficando tarde para conversas. O filho maior pegou a mão do tio. Depois, por encanto, todos se despediram se prometendo um encontro em um futuro próximo para ver como andava a turma. Mas antes, um pouquinho, não é que o Otaviano sussurrou algo como “Muco”, “Puco”, “Bucho” “Bucha”, versões do velho apelido que ele mesmo dera ao amigo? Depois sorriu, inconfundivelmente.
Mas ele, afinal de contas, falou com quem?
Como não tinha a quem dizer sobre o ocorrido, a não ser que quisesse criar uma bela encrenca para si, Bucco decidiu registrar selfies no coração daquele encontro. Dali em diante, evitaria ou não passar por aquela área? Seria bom ou ruim mexer com o vespeiro dos sentimentos? Era sobre o quê que o Bucco sem bússola se indagava? “Muco”, “Puco”, “Bucho”, Bucha”. Não se sabia.
De concreto mesmo, pode-se dizer que ainda houve uma coisa digna de narração. No mesmo dia, em casa, Bucco foi visto resgatando o balão que a filha ganhou de prenda na quermesse da festa de São João da escola. Um balãozinho de gás, colorido e de fundo prateado, que foi se enganchar no teto da modesta casa de Bucco. Faz milagres uma vassoura.
Mas, depois do resgate e da janta, perguntou à filha, que se chamava Isabel, se a lição estava feita ou não.”
*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.