Bucco e o Crossfit

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva a uma academia de ginástica. Força aí!

“Não foi sem curiosidade que um certo Bucco* viu passar do outro lado da rua um Cappelli*, que, sem camisa, carregava uma bola de couro que pesava cerca de seus dez quilos. Tratava-se do aquecimento de uma academia de Crossfit das redondezas: o treino da moda era agora à maneira dos militares norte-americanos. Isto é, em vez de aparelhos ou halteres, o pessoal se concentrava em atividades que exigiam força e equilíbrio como carregar pneus, subir e descer caixas, escalar cordas e arrastar correntes.





Bucco chegou a pensar em como o Cappelli iria postar a foto do treino na conta de sua rede social. E qual seria a legenda? “A vida é 10% o que acontece comigo e 90% como eu reajo a isso”, talvez.

Obviamente, Bucco tinha justificativa na ponta da língua para sua recusa crônica em fazer exercícios físicos. Ora, ele já não andava de bicicleta todos os dias? Não era ele quem subia em telhados, quem se enfiava cisternas abaixo, quem carregou pneus para lá e para cá na borracharia do primo por algum tempo?

Não era ele quem carregava material de obra até o barracão? Não era ele quem capinava terreno e quem furava poços artesianos? Não era ele quem subia e descia escadas com a mudança dos clientes quando o prédio não tinha elevador ou quando a peça não cabia no elevador, como foi o que aconteceu daquela vez com aquele terrível sofá de couro marrom de uma certa senhora Cappelli? Não é a mesma coisa que fazer exercícios? Claro, claro. Ninguém vai ao Oro Restaurante apenas para comer.

Enfim, enfim. Da última vez que ele fez exercício usava um conjunto azul da marca Canalonga. O motivo real da súbita vontade em ganhar músculos pelo corpo é difícil de esclarecer com precisão: talvez devido a um amor não correspondido, ou então ao desejo de não ser mais franzino ou ainda a uma idéia um tanto sem pé nem cabeça de combater as marcas da acne com o pó de ferro dos halteres.

O fato é quem uns trinta anos atrás, o pobre do Bucco foi se meter em uma academia raiz de subúrbio, daquelas em que até o Stallone do cartaz era torto, não somente a boca. Ficou tempo suficiente sem sentir asco e horror dos supinos, das roscas diretas, dos agachamentos, das conversas sobre os miraculosos desempenhos dos anabolizantes da época.

Chegou a lutar contra a repulsa que sentia pelas fitas métricas com as quais os professores mediam a cada dois meses o progresso dos alunos.


Enfim, ele lá estava nem muito firme nem muito menos forte, mas estava. Dizem que, entretanto, algo saiu do prumo quando o Bodão, o professor da Academia Campanelli, ao ver o Bucco com o uniforme azul da Canalonga, o apelidou de “Cotonetes” e depois, por extensão, de “Johnson e Johnson´s”.

Bucco engoliu em seco e fez mais duas repetições na série da rosca direta daquele dia por pura raiva. Questão de honra, troco seria dado quando chegasse o momento oportuno.


Certo dia, na surdina, o Bucco trouxe de casa um desenho. Sem despertar suspeitas, o pregou em lugar visível da academia, ao lado do Arnold de sunga que também era torto, e foi fazer sua série a seu jeito, como quem não quer nada. Meu Deus, ele desenhou o Bodão! Caraca, era basicamente o seguinte: uma cara de bode (por causa do cavanhaque), cujo corpo era forte e definido em cima, mas que embaixo tinha as pernas finas, desproporcionais, frágeis.


O desenho afixado na parede fez a academia inteira rir do Bodão, o que o deixou furioso. Ele rasgou o desenho, para o espanto do pessoal que pensava era o tipo de pessoa que ia levar aquilo na esportiva, e ficou o resto do dia de bode, sentado em um banquinho de supino. Pelo sim, pelo não, Bucco esperou mais ou menos uma semana e se mandou da academia para, segundo seus prognósticos, todo o sempre.


Pelo sim, pelo não, Bodão voltou a malhar perna com regularidade algum tempo depois do incidente. Melhorou mas continuava desproporcional. E depois, muito tempo depois, o professor da academia Campanelli, o Bodão, o boa-praça, o que não passou no teste do Flamengo por ser muito franzino, o que montava as melhores séries, veio a morrer após ter injetado em si mesmo uma vitamina para cavalos.


Foi assim que chegou a Bucco o triste fim da história do Bodão. Coisas da época. Ainda bem que ninguém hoje exagera ao ponto de consumir vitamina de cavalos.


Como não há nada que seja para sempre, muito menos prognósticos, agora o Bucco estava de volta a uma academia. Ao que tudo indicava, o gerente da C. Crossfit iria precisar de alguém de confiança para a troca do piso emborrachado, que com o tempo vai se deformando. Galho fraco para o Bucco, coisa de se fazer em dois domingos, se tanto.


Ou seja, enquanto o Cappelli do início da história estará correndo seus oito Km dominicais em um parque, em um dia de beleza descomunal, Bucco estará envolvido com aquelas enormes placas de borracha de seus três Kg cada e com uma caixa de estiletes.


Qual a legenda a se publicar em sua rede social? Que na feira de hoje, depois da ausência de dois domingos em sequência, Bucco foi visto a se exibir sem camisa com duas grandes e fundas sacolas de compras.”

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna nem sempre sensível com os problemas do próximo.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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