E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva, juntamente com o personagem Bucco, a um ritual de matriz africana, de se embasbacar no ritmo da percussão.
Bucco* achou bonita a cerimônia a que foi convidado para assistir. Era um tipo de batismo, um renascimento, foi assim que o pessoal a descreveu. Era fazer a cabeça, zerar a reza, renascer.
E como o impressionavam as línguas estranhas proferidas nos cânticos. Havia um homem cujas veias saltavam ao cantar. Mais que isso, seus olhos também se vidravam como se ele estivesse possuído. De modo que era difícil se decidir se ele cantava com paixão ou com outro sentimento.
E o batuque, como eram essas coisas. Ele, que vinha dos instrumentos de sopro, de flautas e flautins, gaitas de fole, se embasbacava ao ritmo da percussão, deixando-se levar.
Se não fosse curtido pelo sol devido ao trabalho, ele seria branco como uma vela. Ele meio que sabia o seu lugar, não queria disputar posto com ninguém, era um homem simples e comum, desimportante. Mas não é que aquilo o pegava, o desconcertava, o jogava para cima e para os lados?
Certa vez disseram que seu anjo da guarda era um soldado romano, daqueles com crista e tudo. Ele não se lembrou de imediato, mas deu a entender algum tempo mais tarde que por tal motivo em alguns sonhos de criança lhe foram recorrentes os sujeitos de capa vermelha.
Não se lembrava da cena senão do vermelho da capa.
Como se dentro de um sonho, veio-lhe também sem muita explicação o relato daquela velha vizinha portuguesa, mulher de olhos fundos e de gentil fala, que certa feita disse que levou muito tempo para ver uma pessoa preta. “Na minha aldeia”, ela disse, “não havia gente de cor, só tinha gente branca; assim, por isso, quando eu topei com uma, eu já era mocinha, eu fiquei meio aturdida, sem entender. Levei tempo. Os carabineiros não deixavam a gente cruzar a fronteira”.
E não é que ela foi se casar justamente com um mameluco? Suas irmãs se casaram com homens mulatos e ficou tudo bem como geralmente ocorre em histórias assim. As pessoas dão logo um jeito de tocarem a vida adiante, apesar de todos os senões, de todas as janelas fechadas, de olhares atravessados dos pés à cabeça em certos lugares onde tais encontros não costumam acontecer ou, quando acontecem, são empurrados para fora da órbita dos dias comuns, como se fossem coisas melindrosas que causassem transtornos ao vaivém das pessoas.
O tambor é que nem gente, pensou Bucco, mais ou menos como aquelas imagens das nossas igrejas de aldeia se parecem com gente, são gente, são mais que gente. Ele não sabia direito o porquê, mas um pouco de incenso e cantoria o levava para, além de conclusões repentinas e um tanto despropositadas; isto é, o levava para uns lugares de contemplação onde a gente parece poder pisar em nuvens. É diferente do álcool, do ópio, do tabaco, dessas coisas que a gente usa para transcender. É um entrelugar? Para ele, sim.
Até que se chegou a hora da saída de seu amigo: todo vestido de branco com seu bonezinho, parecendo marinheiro de canto de capoeira. Tudo muito bonito, elegante, feito adaptação de livro de Jorge Amado. Ninguém deixou de comer a comida, de beber o que foi servido, de bater tímidas palmas, de se deslumbrar com os cânticos e com a dança.
Até parecia que tudo aquilo tinha sido feito por gente como Bucco, por que não? Ele não levou as crianças daquela vez, ou melhor, as crianças não quiseram ir, talvez por medo. Que pena, tinha doce de amendoim do tamanho daquelas caixas de fósforo grandes e groselha, aquela de fazer bigode.
Tinham ido ele e a mulher, os dois com roupas claras e leves. E aí apareceu a gentil senhora magra, a quem conheciam de vista. Ela era feito a irmã de Irene do poema de Manuel Bandeira: como ainda não tinha ido para o céu, preparava os bonachões para viver o aqui e agora da melhor maneira possível.
Ela pousou os dois olhos grandes e suaves neles, e os cobriu de finas gentilezas. Melhor anfitriã não havia, pois ela sabia muito, afinal, era uma linda preta velha, maricotinha de muita sapiência, de muita altivez. Foi uma noite memorável. Os dois ficaram de voltar, cada um no seu tempo.
Bucco ainda hoje se arrepia ao ouvir uns batuques ao longe, em especial o som metálico do agogô, que o deixa encantado desde sempre. Seu ouvido, que é bom, percebe algumas semelhanças entre baterias de escola de samba e alguns pontos, como se a escola inteira tocasse para alguém em particular.
E a mulher, de quando em quando, pede para que ele traga uns acarajés da feira, se possível com muito caruru, para ele, para ela e para as crianças. Ao que ele atende, sem se esquecer do doce de amendoim, do tamanho de uma caixa de fósforos grande, ou da groselha das crianças.
*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.