Por Josmar Jozino, publicado em Ponte Jornalismo –
Daniel Gonçalves Correa respondia por assassinato ocorrido em fevereiro de 2016, em retaliação à morte do Cabo Pereira, ocorrida quase sete meses antes e que desencadeou a maior chacina da história de São Paulo
A guerra entre o tribunal do crime organizado (que decreta à morte seus inimigos) e a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da Polícia Militar, parece não ter fim e fez novas vítimas nos últimos dias 25 e 26 na Baixada Santista. O cabo Daniel Gonçalves Correa, 43 anos, foi executado a tiros em Santos, (25/04) um dia depois de participar de audiência judicial no Tribunal do Júri de Osasco, na Grande São Paulo.
Ele respondia a processo pelo homicídio doloso (quando há intenção de matar) de um suposto integrante do PCC (Primeiro Comando da Capital). No dia do enterro de Gonçalves, a Rota matou três homens na Baixada Santista.
Segundo o Ministério Público Estadual, o cabo Gonçalves e o sargento Flávio Henrique da Silva, 54 anos, ambos da Rota, estavam em serviço no dia 29 de fevereiro de 2016, quando mataram, por motivo torpe, Thiago Santos de Almeida, o Biriba, 26 anos. Uma testemunha protegida disse à Polícia Civil que ele estava dormindo, enrolado a um cobertor, quando PMs da Rota invadiram a casa dela. O rapaz foi morto com tiros de fuzil calibre 5.53 e de pistola calibre 40, armas de uso da Polícia Militar.
Almeida era procurado pela Justiça e estava com prisão decretada sob a acusação de ter matado o cabo da Polícia Militar Ademilson Pereira de Oliveira, 42 anos, da Força Tática do 42° Batalhão, durante assalto a um posto de gasolina em Osasco no dia 7 de agosto de 2015. Outros dois rapazes acusados de participar com Almeida do assassinato do cabo Pereira foram presos e condenados. Um recebeu a pena de 35 anos e o outro, ex-frentista do posto onde ocorreu o crime, a 40 anos.
O Ministério Público apurou que seis dias depois da morte do cabo Pereira, um grupo de policiais militares vingou a morte dele, matando 19 pessoas e ferindo outras sete em Osasco e Barueri, na maior chacina da história de São Paulo. Para o MP, o cabo Gonçalves e o sargento Silva executaram Almeida também para vingar a morte do colega de farda Pereira.
Gonçalves, no entanto, teve morte semelhante à de Almeida: foi executado a tiros, por motivo torpe e sem chance de defesa, logo depois de participar de um churrasco com amigos no bairro Castelo, em Santos. Era seu dia de folga.
O atirador fugiu, mas câmeras de segurança o flagraram cometendo o crime. Depois do assassinato de Gonçalves, dezenas de viaturas da Rota foram para Santos na tentativa de capturar o criminoso.
No dia anterior à sua execução, Gonçalves – que era casado e pai de três filhos – participou da audiência sobre a morte de Almeida no Fórum de Osasco, presidida pela juíza Élia Kinosita Bulman. A testemunha protegida também compareceu à audiência e já havia contado à Polícia Civil que estava em casa no dia da morte de Almeida e que o portão da residência fora trancado com cadeado e corrente. Ela afirmou que Almeida havia chegado em casa por volta das 5h e lhe revelou que na noite anterior tinha realizado um assalto em Caraguatatuba, no Litoral Norte de São Paulo.
A testemunha acrescentou que saiu às 7h para levar a filha à creche e retornou uma hora depois, quando trancou o portão com o cadeado e a corrente. Disse que Almeida ainda estava deitado e que depois de 20 minutos ouviu barulhos e passos sobre a laje, constatando que a casa estava cercada por policiais militares da Rota.
Em seguida – continuou a testemunha – cinco PMs entraram na residência e um deles a pegou pelo braço e a levou para o banheiro.
Antes de trancá-la, o PM perguntou para ela “quem é ele, quem é ele”, referindo-se a Almeida. O PM também a indagou se ele estava armado e a resposta foi negativa. Depois de 10 minutos, a testemunha foi retirada do banheiro e, passados mais 10 minutos, ela ouviu disparos de arma de fogo. Ela só soube da morte de Almeida na delegacia, para onde foi levada pelos militares.
O cabo Gonçalves e o sargento Silva alegaram que a Rota recebeu denúncia anônima informando que Almeida estava escondido na casa de Osasco. Segundo eles, cerca de 30 a 40 PMs da Rota foram ao local para tentar prender Almeida. Ambos alegaram ainda que avistaram Almeida em uma casa e que ele estava armado com pistola 9mm.
Gonçalves e Silva afirmaram que pediram para Almeida se entregar, mas que ele resistiu, tentou fugir e atirou em direção a ambos, sendo que eles revidaram e acabaram ferindo o foragido. Almeida foi levado para um hospital, mas morreu. A pistola 9mm e as armas dos policiais foram apreendidas e periciadas e os exames balísticos tiveram resultado positivo.
O promotor de Justiça Marco Aurélio de Souza foi designado para acompanhar as investigações sobre a morte de Almeida, mas pediu o arquivamento do caso ao concluir que os PMs agiram em legítima defesa. Souza entendeu também que o depoimento da testemunha protegida deveria ser recebido com reservas porque ela foi apontada como namorada de Almeida e acobertava e abrigava em casa um foragido da Justiça.
A juíza Élia Kinosita Bulman não aceitou o pedido de arquivamento feito pelo promotor Souza e determinou que os autos do processo fossem remetidos para a Procuradoria Geral de Justiça. Em sua decisão, ela fez a seguinte observação: “É no mínimo estranho que cerca de 30 policiais da Rota, portando armas de vários calibres, tenham se empenhado na detenção dessa pessoa e que a vítima teria conseguido fugir e ameaçá-los”. Em outro trecho, a juíza diz: “É urgente que a sociedade não seja conivente com a conduta de policiais que fazem justiça com as próprias mãos, matando pessoas supostamente envolvidas na morte de policiais, em clara demonstração de descrédito para com o Poder Judiciário”.
O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, recebeu os autos enviados pela juíza e designou a promotora Helena Bonilha de Toledo Leite para acompanhar o caso e oferecer denúncia contra os PMs. A promotora denunciou Gonçalves e Silva por homicídio doloso. Segundo ela, o cabo e o sargento da Rota, “imbuídos de ânimo homicida, mataram Almeida porque ele era conhecidamente envolvido com a prática de crimes e deveria morrer por esse motivo”.
Para a promotora, o cabo Gonçalves e o sargento Silva “se valeram de abuso de poder e violaram dever inerente a cargo e função pública para a prática de crime e extrapolaram seus limites de atuação”. Na audiência judicial do último dia 24, além do cabo Gonçalves compareceram ao Fórum de Osasco parentes de Almeida, a testemunha protegida, o sargento Silva e outros policiais militares da Rota. Um dos PMs arrolados como testemunha de Gonçalves acredita que o colega de farda foi seguido na saída do Fórum de Osasco e por isso acabou executado no dia seguinte em Santos.
Justiça com as próprias mãos
A Ponte conseguiu o áudio com a fala de um policial militar e, na opinião dele, Gonçalves foi assassinado por causa da morte de Almeida. Segundo esse PM, Almeida era um integrante do PCC. Tudo indica que a morte de Gonçalves é realmente mais um capítulo da guerra sem fim entre o crime organizado e policiais militares da Rota. Em 13 de agosto de 2015, seis dias depois do assassinato do PM Pereira no posto de gasolina, atiradores encapuzados mataram com vários disparos 19 pessoas e feriram outras sete.
As investigações da Polícia Civil e do Ministério Público apontaram que a matança foi uma vingança pelos assassinatos do PM Pereira em Osasco e de um guarda civil em Barueri, ambas cidades da Grande São Paulo. O policial militar Fabrício Eleutério, que era da Rota, foi condenado em primeira instância a 255 anos, sete meses e 10 dias pela maior chacina de São Paulo. O PM Thiago Henklain foi condenado a 247 anos e sete meses e o guarda civil Sérgio Manhanhã a 100 anos e dez meses. Já o processo sobre a morte de Almeida continua em andamento e a próxima audiência foi designada para o dia 29 de julho deste ano.
Na avaliação de Ronaldo Tovani, advogado do sargento Silva, “Almeida era elemento comprovadamente do mal, bandido perigoso, gente que não presta”. Segundo o advogado Tovani, “houve uma inversão de valores e o cabo Gonçalves e o sargento Silva, em vez de serem criminalmente denunciados pela morte de Almeida, deveriam ser reconhecidos pelo relevante serviço prestado à sociedade”.
Nos autos do processo sobre a morte de Almeida consta que o então sargento Flávio Henrique da Silva se aposentou como 2° tenente e que mora em Santa Catarina. Já o advogado do cabo Gonçalves, Welington Zamperlin Barbosa, pediu a absolvição sumária de seu cliente na defesa preliminar apresentada à Justiça. Welington Barbosa sustentou que Gonçalves e Silva agiram em legítima defesa e em estrito cumprimento do dever.
O corpo do cabo Gonçalves foi enterrado no último dia 26 no Cemitério Municipal de São Vicente. A DIG (Delegacia de Investigações Gerais) de Santos tenta identificar o assassino do policial militar da Rota. Algumas horas depois do enterro de Gonçalves, a Rota aterrorizou a periferia da Baixada Santista e matou três pessoas na comunidade do Siri, na Vila dos Pescadores, em Cubatão. Os policiais da tropa de elite da PM alegaram que os “suspeitos” resistiram à prisão e foram baleados e mortos no revide. Moradores do bairro contestaram a versão dos militares e afirmaram que um dos mortos foi baleado quando já estava caído no chão.
Colaboração: Maria Teresa Cruz