Manaus (AM) – Uma operação da Polícia Militar do Amazonas, em Nova Olinda do Norte, é investigada por excessos, abusos de autoridade e violações de direitos dos indígenas Munduruku, da Terra Indígena Kwatá Laranjal, e Maraguá, da aldeia Terra Preta, além de ribeirinhos do Projeto de Assentamento Agroextrativista Abacaxis 2. Um Munduruku morreu e outro encontra-se desaparecido.
O estopim da ação policial, conforme a Amazônia Real publicou , ocorreu em 24 de julho, após o então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social do governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa , ser baleado no ombro. Ele praticava pesca esportiva sem licença ambiental na região do rio Abacaxis, próxima a comunidades tradicionais dos Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAEs) Abacaxis I e II, nos municípios amazonenses de Borba e Nova Olinda do Norte. Na ocasião, as atividades de cultura, esporte e lazer estavam proibidas por causa da quarentena da pandemia do coronavírus.
Como represália ao ataque a Saulo Moysés Costa, no último dia 3 de agosto, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP) realizou uma operação com 50 homens da Polícia Militar, incluindo membros da Companhia de Operações Especiais (COE), sob a alegação de combater o tráfico de drogas na região. O objetivo era buscar o “cara que deu o tiro” no secretário, segundo relatos de testemunhas ao Ministério Público Federal (MPF). Durante a ação policial, ao menos oito pessoas morreram, entre elas: dois policiais; dois indígenas Munduruku, e um homem acusado de líder do tráfico de drogas pela SSP. A Polícia Federal investiga o caso com o apoio da Força Nacional de Segurança, a pedido do MPF.
A reportagem da agência Amazônia Real entrevistou, por telefone, a cacica Alessandra Munduruku, tia dos indígenas mortos: Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, e de Josivan Moraes Lopes, de 18 anos; o corpo de Josivan não foi encontrado até o momento. Ela afirma que os jovens foram confundidos com traficantes e relata violações de direitos humanos por parte de policiais da PM.
Os indígenas saíram no dia 6 de agosto da comunidade Laguinho do Bem Assim, na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, rumo à sede do município de Nova Olinda do Norte (AM). Eles deveriam ter chegado ao destino cerca de 30 minutos depois, mas isso nunca aconteceu.
Alessandra contou que, assim como ela, toda a comunidade do Laguinho do Bem Assim está abalada e temerosa com a situação. “Nunca tinha acontecido nenhum episódio de violência como esses por aqui”, conta. “Nós estamos muito mal com isso, porque a gente não sabe o que está acontecendo e nem sabemos por onde começar para resolver essa situação.”
“Aqui onde eu moro, a gente não tem problema com o tráfico, a gente não conhece quem eles [a polícia] estão procurando. Eu não conheço a região do [rio] Abacaxis. Fica muito distante. O que eles fizeram: entraram dentro de uma área indígena, mataram dois indígenas e saíram de volta, porque a gente tem provas de que eles passaram aqui em frente da comunidade [Laguinho do Bem Assim] e chegaram até o igarapé chamado Tucunaré, chegando até o igarapé das Pedras”, relata a cacica.
Os irmãos Josimar e Josivan Moraes Lopes, do povo Munduruku (Foto: Arquivo Pessoal)
De acordo com moradores do local, uma lancha da PM foi vista na região onde o corpo de um dos rapazes, Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, foi encontrado. A cacica afirma que ela e outros moradores da comunidade viram uma lancha “cheia de polícia” e com a inscrição “Polícia Militar” na localidade. “Eles perguntaram para indígenas que estavam pescando para que lado ficava o rio Abacaxis”, relata. “Para eles entrarem [na terra indígena], eles tinham que ter autorização.”
Segundo Alessandra, até agora as autoridades não tomaram providências para encontrar o corpo do sobrinho desaparecido. “Eu sei que a Justiça é lenta, que o sistema é lento, mas eu quero justiça pelos meus meninos”, apela. “Eu quero apoio da Funai e da Justiça! Ninguém está vindo me ajudar. Eu quero apoio de mergulhadores, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, Corpo de Bombeiros, de tudo, porque não tem lógica os meus meninos que nasceram e foram criados comigo e morreram desse jeito, de dizer que eles eram envolvidos com drogas, mas eles nem frequentavam outras comunidades. Só saiam por necessidade e quase não saíam”, afirmou a cacica.
Alessandra também questiona a entrada de policiais em terra indígena, sem autorização do órgão indigenista. “A nossa Funai fica em Nova Olinda do Norte. Por que eles [os policiais] não pediram autorização para entrar? Porque autorização eles não tinham, não. Não tinham e não têm”, diz. “A gente estava sem comunicação, sem informação, eles não tinham autorização para entrar dentro da área indígena e onde eles vieram entrar, na área indígena, e matar gente inocente, pois ninguém sabia de nada.”
“Eles mataram os meus dois indígenas, mas eles têm que pagar pelo que eles fizeram e eu quero uma resposta da Justiça. Como eles estão dizendo que foi bandido que matou, poxa, será o bandido se vestiu de polícia?! Eles já estão tirando o deles, mas eu estou acusando que foi a polícia que matou meus meninos”, afirma Alessandra Munduruku.
De acordo com a cacica, nenhum representante da SSP procurou ela ou a família dos rapazes para oferecer qualquer tipo de apoio, mesmo após o caso já ser conhecido. “No dia que eles desapareceram, fui à delegacia registrar a situação, mas o delegado disse que estava faltando informações e que eu voltasse depois.”
Questionada sobre a existência de um boletim de ocorrência sobre a morte de Josimar Alessandra conta que o registro foi realizado pelos pais dele, pois ela não tinha condições emocionais, que acompanharam a remoção do corpo até o hospital municipal de Nova Olinda do Norte para emissão do atestado de óbito. O jovem Munduruku foi enterrado no mesmo dia, em um cemitério localizado na foz do rio Canumã, em Borba.
Organizações cobram fim de operação da PM
Coletiva de imprensa da CPT e MPF e demais entidades contra o conflito do rio Abacaxis
(Foto Clodoaldo Pontes/CPT)
Mais de 50 organizações de direitos humanos e entidades religiosas, entre elas, a Arquidiocese de Manaus, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) entregaram ao Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPE), na segunda-feira (17), um documento intitulado “Manifestação contra a violência da Polícia Militar no Rio Abacaxis e na Terra Indígena Kwatá-Laranjal”, em que pede, entre outras coisas, a constituição de uma comissão especializada do Conselho Nacional de Direitos Humanos. O objetivo é visitar a região do conflito para elaborar um informe sobre as violações de direitos fundamentais das comunidades indígenas e ribeirinhas. Também solicitam a realização de buscas as pessoas desaparecidas. As organizações querem o fim da operação da PM em Nova Olinda do Norte. Leia a nota aqui.
Segundo as organizações, os “moradores da região estão sendo impedidos de sair para pescar e caçar, o que coloca em risco a vida destas pessoas”.
Diante da repercussão de como começou o conflito, no último dia 11, o secretário Saulo Moysés foi exonerado do cargo, conforme publicado no Diário Oficial do Amazonas. De acordo com Secretaria Estadual de Comunicação (Secom), ele deixou o governo “a pedido”.
Defensores de direitos humanos e dos direitos indígenas relataram à reportagem da Amazônia Real que os comunitários estão em pânico pelo terror espalhado após a polícia entrar em confronto com supostos traficantes da região. Após as mortes, os moradores não querem mais falar com jornalistas, pois temem reações de traficantes que atuam na área e da polícia, segundo apurou a reportagem.
Os 8 mortos no conflito em Nova Olinda do Norte
Indígenas Maraguá na aldeia, em foto de 2019. (Foto: Cimi Regional Norte I)
A série de mortes em Nova Olinda do Norte começou com os homicídios dos policiais militares cabo Márcio Carlos de Souza (1) e do sargento Manoel Wagner Silva Souza (2) . Segundo a SSP, ambos foram mortos por traficantes em confronto durante o primeiro dia de operação, em 3 de agosto.
Na manhã de 7 de agosto, a cacica Alessandra Munduruku localizou no Laguinho do Bem Assim, na Terra Indígena Kwatá Laranjal, o corpo do sobrinho Josimar Moraes Lopes (3), de 25 anos, indígena Munduruku, morto pela PM, segundo testemunhas. Para a família, o estudante Josivan Lopes (4), de 18, também foi morto. Para a SSP, ele é dado como desaparecido. O corpo não foi encontrado até o momento.
No dia 8, a SSP informou que um homem identificado como Eligelson de Souza da Silva (5), 20, foi morto ao atirar contra as equipes policiais, que revidaram. Com ele, foi apreendido um revólver calibre 38, diz a polícia.
Os corpos do casal Anderson Monteiro (6), Vanderlania Araújo (7) e do adolescente Matheus Araujo (8), de 16 anos, foram localizados pela Polícia Federal no rio Abacaxis no dia 11. O menino era filho de Vanderlania. Segundo testemunhas, eles teriam sido mortos pela PM.
A SSP-AM atribui as mortes ao grupo criminoso supostamente liderado por um homem identificado como Valdelice Dias da Silva, o Bacurau, que segundo a secretaria é um foragido da Justiça. Segundo a investigação, ele tinha conflitos com povos indígenas por ter invadido um terreno.
“Há cerca de dois meses essa quadrilha executou o filho de um cacique Maraguá com 16 facadas”, informou o órgão por meio de nota. A SSP afirma que em todos os casos foram abertos inquéritos policiais e que as mortes serão investigadas pela Polícia Civil. “Nenhuma hipótese é descartada”, diz o órgão.
Em nota oficial, a SSP afirma que “a operação policial em Nova Olinda do Norte visa desarticular uma organização criminosa que atua na região com a prática de tráfico de drogas, ameaças, homicídios e crimes ambientais”. E informa que, até o momento, 15 pessoas foram presas, sendo 11 em flagrante. Um total de 13 armas de fogo foram apreendidas e quatro plantações de maconha localizadas”. Um dos presos, diz a nota, é o presidente da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera). O nome dele não foi informado pela secretaria.
Para garantir a defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, a agência de jornalismo independente e investigativa Amazônia Real não recebe recursos públicos, não recebe recursos de pessoas físicas ou jurídicas envolvidas com crime ambiental, trabalho escravo, violação dos direitos humanos e violência contra a mulher. É uma questão de coerência. Por isso, é muito importante as doações das leitoras e dos leitores para produzirmos mais reportagens sobre a realidade da Amazônia. Agradecemos o apoio de todas e todos. Doe aqui .
Os textos, fotografias e vídeos produzidos pela equipe da agência Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia: jornais impressos, revistas, sites, blogs, livros didáticos e de literatura; com o crédito do autor e da agência Amazônia Real. Fotografias cedidas ou produzidas por outros veículos e organizações não atendem a essa licença.