Estudo do Instituto Escolhas mostra que atividade nada tem de artesanal: investimento é alto e o faturamento também
Por Amelia Gonzalez, compartilhado de Projeto Colabora
Balsas de garimpeiros destruídas em operação do Ibama e da Polícia Federal: estudo mostra faturamento de mais de R$ 1 milhão por mês em cada atividade garimpeira (Foto: Divulgação/Ibama)
Quando o Presidente Lula da Silva, recém empossado, anunciou em janeiro deste ano um decreto para acabar com o garimpo em terras indígenas, sobretudo na região amazônica, uma parte dos ambientalistas comemorou. Outra parte, porém, que vê o inabalável elo de ligação entre a crise ambiental e a crise social, manteve rugas de preocupação. Afinal, até onde se pode crer em números redondos, dados registram que havia, na época, vinte mil garimpeiros só na TI Yanomami.
Não há cálculo preciso das milhares de pessoas que vivem, se alimentam e se organizam socialmente, em torno do garimpo. Se faltava dar corpo e voz à atividade, o estudo “Abrindo o livro caixa do garimpo”, do Instituto Escolhas, preenche em parte essa lacuna. A análise se concentrou nos custos, mostrando que, para iniciar uma operação de garimpo de balsa na Amazônia, é preciso desembolsar cerca de R$ 3 milhões. Já o faturamento fica em torno de R$ 1,16 milhão por mês. Feitos os pagamentos, o lucro do garimpo de balsa gira em torno de R$ 632 mil.
Conclusão: se alguém ainda imaginava o garimpo com aquela roupagem artesanal que nos habituamos a ver em fotos antigas, saiba que isso ficou para trás. “Os garimpos de ouro na Amazônia movimentam grandes recursos financeiros e estão longe de ser uma atividade artesanal”, aponta o estudo. Basta saber que em 2012, segundo o estudo, a presença de retroescavadeiras começou a se tornar comum nos garimpos. Naquela época, gastava-se um mês para desmatar a área a ser explorada e inaugurar as escavações. Hoje, com a ajuda das máquinas, os homens conseguem o feito em uma semana.
Mas, como as empresas conseguiram chegar e passaram a acreditar na atividade de tal forma a fazer investimentos?
Uma parte dessa resposta está na própria legislação brasileira. Em 2013, foi estabelecida a “presunção de boa fé” pela lei 12.844. Resumindo, a lei diz o seguinte: para comprar ouro – metal mais procurado, óbvio – qualquer empresa pode fazê-lo apenas com formulários preenchidos à mão, nos quais declaram que sua origem é conhecida. Sem qualquer comprovação. Mais ou menos como no tempo em que “fio de bigode” servia como palavra empenhada.
Os pesquisadores que fizeram o estudo do Instituto Escolhas separaram a atividade de garimpo em dois tipos. O garimpo de balsa, que acontece nos rios, e o garimpo de baixão, que acontece em terra, em áreas próximas aos rios. Para chegar aos valores médios de uma operação típica de balsa, foi considerada uma balsa grande, com 18 garimpeiros e duas cozinheiras. Nas operações de baixão, foram incluídos no cálculo o operador da retroescavadeira e as horas das máquinas (retroescavadeira e bombas hidráulicas para derrubar os barrancos e bombear os sedimentos.
Entre o garimpo de balsa e o baixão, não há muita diferença de faturamento. O garimpo de baixão fatura mensalmente cerca de R$ 930 mil, enquanto o lucro fica em torno dos R$ 343 mil mensais. “Os garimpos são empreendimento com alto investimento e uma renda considerável, mas beneficiados por uma legislação que faz poucas exigências para autorizar as operações e que não atrela ao garimpo a responsabilidade de recuperar as áreas devastadas e contaminadas pelo mercúrio. Aí, reside o interesse em seguir mantendo a aura artesanal do garimpo, que já não é realidade há muito tempo”, alerta Larissa Rodrigues, gerente de portfólio do Escolhas.
Custos ambientais e de saúde
O estudo mostra também o que não entra na contabilidade dos garimpos, sejam eles de balsa ou baixão. Nesses números entram os tais valores intangíveis, que, no jargão das empresas, também são chamados de externalidades. Um balaio onde cabe tudo o que interessa para a sociedade, e que precisa ser contabilizado se invertemos um pouco a ordem das coisas e chamarmos, por exemplo, os recursos naturais (no caso, ouro) de bens comuns.
Os pesquisadores do Instituto Escolhas lançaram mão de estimativas da Calculadora de Impactos do Garimpo, desenvolvida pelo Conservation Strategy Fund (CSF) e pelo Ministério Público Federal (MPF) e concluíram que só os “custos de recuperação ambiental das áreas atingidas variam entre R$ 161 mil e R$ 437 mil por mês, dependendo do tipo de operação”. E mais: “Além disso, para lidar com os impactos sobre a saúde das pessoas expostas ao mercúrio usado nos garimpos de ouro, os recursos necessários poderiam variar entre R$ 2 milhões e R$ 4 milhões mensais”, alerta o texto do relatório.
Nada disso entra nas finanças garimpeiras, que também não incluem condições dignas e seguras de trabalho ou custos trabalhistas, diz o estudo. Seguindo à risca a bíblia neoliberal, os donos dos garimpos, que possivelmente estão muito longe dos rios e das balsas, consideram os garimpeiros como “sócios”. Mas o “salário” desses pseudo sócios é um pagamento informal, sem quaisquer garantias sociais
A corrida do ouro na década de 1970
Cabe também a pergunta: como começou esse avanço nos rios e terras amazônicos em busca de riqueza? Não há resposta conclusiva. Mas é possível que a informação da existência de ouro e minérios tenha se espalhado em algum momento da história do país para dar escala ao garimpo artesanal e pontual que deveria existir antes da década de 1970. Foi nessa época que o governo militar lançou o Projeto Radam.
Com o objetivo de garantir a segurança territorial, o Radam foi considerado por estudiosos, “o primeiro esforço significativo de um levantamento do território brasileiro”. Na década seguinte, cerca de cem mil pessoas protagonizaram as cenas de Serra Pelada, o maior garimpo até hoje no Brasil. De lá foram extraídas trinta toneladas de ouro, que marcaram para sempre a geografia local. Fotos ainda hoje disponíveis evidenciam o desastre ambiental e o ponto de desconexão com a saúde que aqueles homens chegaram em busca do enriquecimento. Considerando as condições subhumanas do trabalho, nem se pode dizer que seria um enriquecimento fácil.
Mas vale a pena também materializar as deduções teóricas do estudo feito pelo Instituto Escolhas, e para isso não faltam casos na mídia, que muitas vezes já se ocupou de denunciar o escândalo socioeconômico ambiental que os garimpos trazem à tona. Em setembro de 2021, uma reportagem do site Repórter Brasil foi ao Rio Madeira e de lá trouxe, por exemplo, a história de Alzira, mulher de 48 anos que trabalha como cozinheira num garimpo ilegal. Ela tinha a sorte de receber um salário fixo – de R$ 5,5 mil – em cujo valor estão embutidos os riscos de trabalhar numa balsa sujeita a temporais e outros bichos. “Geralmente o dono – que assume os custos dos insumos (diesel, mercúrio e alimentação) – fica com 70% do lucro e os trabalhadores dividem os 30% que sobram, a forma de pagamento mais comum em garimpos ilegais”, diz a reportagem.
No mesmo ano, o “Le Monde Diplomatique” escancarou o padecimento dos indígenas Yanomami, mesma etnia que compadeceu a sociedade brasileira quando veio a público a situação degradante em que viviam no início deste ano. A reportagem do site francês mostrou o enriquecimento de grandes empresas com o garimpo, contrapondo a situação dos indígenas e a devastação florestal que a atividade causava.
Nada muito diferente do que é hoje. Na verdade, talvez, sim, a situação hoje esteja pior.