Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, publicado em Jornal GGN –
No restante, o telejornal passa o tempo falando de si mesmo – metalinguagem, autorreferencialidade fática e efeito Heisenberg. Resultando num híbrido de jornalismo e propaganda. Infotenimento.
Em 2003 o pesquisador Martin Howard no seu livro “We Know What You Want” descobriu que em cada hora de notícias da CNN, o noticiário transmitia pouco menos de cinco minutos de “notícias reais” (fatos espontâneos, históricos, externos à existência da mídia) – o restante é ocupado por metalinguagem e autorreferências. Sem falar no chamado “Efeito Heisenberg”: a mídia não consegue mais reportar o real – transmite apenas os efeitos que ela produz ao cobrir os eventos e, também, o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia. O “Cinegnose” aplicou essa mesma metodologia na análise de quatro edições do telejornal local “Bom Dia São Paulo” da Globo. E chegou a resultados próximos: duas horas de telejornal resultam em 27 minutos de “notícias reais” – ou média de 13 minutos de notícias por hora. No restante, o telejornal passa o tempo falando de si mesmo – metalinguagem, autorreferencialidade fática e efeito Heisenberg. Resultando num híbrido de jornalismo e propaganda. Infotenimento.
Sabemos que há muito tempo a TV deixou de ser uma janela aberta para o mundo – uma testemunha ocular da História de eventos espontâneos que são apenas observados e reportados. Não importa se de forma parcial ou imparcial. Mas, pelos menos, os fatos estão ali, históricos, espontâneos, regidos por uma lógica própria e indiferentes à existência das mídias.
Mas isso foi deixado para trás, para os velhos tempo do “Repórter Esso” dos tempos do rádio e da TV Tupi, que se auto-intitulava “testemunha ocular da História”.
Essa mudança radical da natureza da TV (ou dos fatos) não se deve apenas à mentira, omissão ou manipulação dos acontecimentos por interesses midiáticos políticos, ideológicos ou partidários. Mas também como um efeito intrínseco ao próprio crescimento das mídias, até se tornarem umhorizonte de eventosanálogo ao dos buracos negros da astrofísica: se não apareceu no horizonte midiático, logo jamais aconteceu.
O jornalística e crítico social norte-americano Neal Gabler deu um nome para esse fenômeno: “Efeito Heisenberg” em uma alusão ao princípio da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, o ato de medir a posição necessariamente perturba o momentum da partícula – você não pode observar uma coisa sem influenciá-la – Leia GABLER, Neal. “Vida, O Filme – Como o entretenimento conquistou a realidade”, Companhia das Letras, 1999.
Para Gabler, o crescimento do complexo midiático ao ponto de transformá-lo no próprio horizonte de eventos da sociedade produziu um gigantesco Efeito Heisenberg: a mídia não consegue mais reportar o real, mas apenas cobre a si mesma – o efeitos que ela produz ao cobrir os eventos e, também, o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia.Negócio tautológico
O problema é que, por má-fé, continua a vender isso como “informação” ou “jornalismo”, escondendo a natureza tautológica em que se transformou o negócio.
Por exemplo, Martin Howard em seu livro “We Know What You Want” (Desinformation Book, 2005) levantou alguns dados de como o telejornalismo da CNN, por hora, produz em média pouco menos de cinco minutos de notícias “reais” (isto é, relativas a fatos “espontâneos”, “históricos”, externos à mídia), em confronto a acontecimentos cuja motivação é atrair a atenção das mídias (estórias de tabloides e notícias regionais) ou metalinguagem e auto-referência – conteúdo de talk show e escaladas. Sem falar nos infomerciais e intervalos publicitários.
O caso do telejornal local Bom Dia São Paulo da TV Globo (apresentador pelos jornalistas Rodrigo Bocardi e Glória Vanique) é certamente um objeto exemplar para essa análise sobre o destino “Heisenberg” da grande mídia.
Em postagem anterior este humilde blogueiro já havia analisado que os diversos “Bom Dia” (SP, Rio, Minas etc.) de uns tempos para cá assumiram uma função motivacional, como primeiro telejornal da manhã para aqueles que vão à procura de trabalho ou para seus empregos – o predomínio de matérias “inspiradoras”, “motivacionais” onde até na previsão do tempo o viés é o de dar “boas notícias” para dar um “up” no astral tão em baixa dos brasileiros – clique aqui.
Mas, particularmente, o Bom Dia SP é um caso exemplar – o Efeito Heisenberg está tão presente que o noticioso está chegando às raias do “infotenimento”: gênero híbrido de entretenimento com informação.
A irrealidade da metalinguagem
Vamos primeiro aos números, tentando acompanhar a metodologia proposta por Martin Howard fez com a análise hora a hora da CNN. O Cinegnose analisou as edições de 30/08 e de 02 a 04 desse mês de setembro.
O Bom Dia SP preenche duas horas da grade matinal de programação de segunda a sexta. Destas, 11 minutos são ocupados por intervalos publicitários.
Os destaques da irrealidade cotidiana desse telejornal é o domínio da metalinguagem e a autorreferência – ou discursos de natureza eminentemente fática: uma média de seis a sete minutos por quarto de hora. Totalizando pouco mais de 55 minutos – 46%. Ou seja, quase metade da parte editorial do programa passa o tempo falando de si mesma.
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Por metalinguagem consideramos enunciados em que temos a centralidade do jornalista e dos meios de enunciação (câmeras, helicóptero etc.) como os protagonistas da informação, sobrepondo-se à “realidade” que deveria ser reportada.
(a) Conversas travadas entre os apresentadores, nas quais se confundem a opinião com enunciados referenciais;
(b) Piadas, observações engraçadas e “piadas internas” entre apresentadores e a produção como os operadores de câmeras do estúdio, assistentes e diretores;
(c) A presença dos próprios apresentadores Rodrigo e Gloria ao lado de espectadores na vinheta “Bom Dia São Paulo Volta Já!” no final de cada bloco;
(d) Repórter que vira protagonista da informação como, por exemplo, a repórter que decide andar em uma espécie de scooter no interior de um show room de veículos alternativos no bairro dos Jardins; ou, então, o repórter que anda de bike por um ciclovia no qual os meios de transmissão (câmera no capacete do repórter e o séquito de câmeras e assistentes que acompanham o trajeto) viram uma espécie de “show de transmissão”.