Cais do Valongo pode se tornar Patrimônio da Humanidade

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Por André Cabette Fábio, Nexo – 

Historiadores calculam que entre 500 mil e 1 milhão de escravos chegaram ao Brasil pelo local




Quadro de 1822-1825 de Johann Moritz Rugendas mostrando o controle na alfândega de africanos escravizados recém chegados ao Rio

QUADRO DE 1822-1825 DE JOHANN MORITZ RUGENDAS MOSTRANDO O CONTROLE NA ALFÂNDEGA DE AFRICANOS ESCRAVIZADOS RECÉM CHEGADOS AO RIO

Dos cerca de 10 milhões de escravos africanos que aportaram nas Américas entre os séculos 15 e 19, aproximadamente 4 milhões vieram para o Brasil. A maior parte destes chegou  no Rio de Janeiro. Até 1759 eles desembarcavam em uma região que fica entre a Praça 15 e o que é hoje o Aeroporto Santos Dumont. As mulheres e homens que sobreviviam à viagem desciam nus e imundos dos navios negreiros depois de um trajeto de  três meses sem banho.

Com frequência doentes, podiam ser vistos e comprados no centro do Rio de Janeiro, na Rua Direita, atualmente rua Primeiro de Março, onde fica o Centro Cultural Banco do Brasil. Com o objetivo de poupar os transeuntes, o Marquês de Lavradio, o segundo a governar o Rio de Janeiro após a chegada da família real portuguesa, determinou em 1759 que o tráfico negreiro fosse transferido para trás do morro do São Bento, na Praia do Valongo, que se estendia até a Praça da República.

Conhecida como Cais do Valongo, a região passou a concentrar não só o desembarque, mas também atividades como alojamento e enterro de negros desterrados.

Agora, um grupo de trabalho convocado pela prefeitura do Rio e pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) está encabeçando a candidatura da área ao status de Patrimônio da Humanidade, o que contribuiria para a preservação desse período histórico que hoje é condenado, mas é fundamental para a compreensão da construção da identidade nacional.

“A transferência [do tráfico para o Cais do Valongo] aconteceu para que as pessoas não fossem confrontadas com o triste, trágico e nojento espetáculo da chegada dos africanos em péssimas condições no Brasil”

Milton Guran

Antropólogo, fotógrafo e jornalista, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, integrante do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo, da Unesco (Organização para a Educação, Ciência e Cultura da ONU) e coordenador do grupo de trabalho que apresentou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade

Cálculos de historiadores estimam que entre 500 mil e 1 milhão de escravos chegaram através do Cais do Valongo. Desde a sua desativação como porto de navios negreiros em 1831, ele foi soterrado por sucessivos projetos urbanísticos. Hoje, as ruínas que resistem no local são o único vestígio material do desembarque de escravos africanos nas Américas que se tem conhecimento.

ONDE FICA O CAIS DO VALONGO

Qual a constituição do Cais do Valongo e como ele foi redescoberto

Segundo Milton Guran, o antropólogo que coordena o grupo de trabalho que apresentou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, a estrutura portuária do local era extremamente simples. Os africanos desembarcavam com o pé na areia – depois um calçamento tosco foi construído.

O espaço  funcionava como um complexo que envolvia mais do que o desembarque. Havia um lazareto – local onde escravos doentes ficavam de quarentena até que melhorassem ou morressem -, barracões onde escravos dormiam antes de serem vendidos, e um cemitério.

Na época em que a área funcionava como porto, 70% da população do Rio de Janeiro era negra, entre africanos e descendentes de africanos. Eles constituíam mercado consumidor de produtos da África, como condimentos, objetos de culto, panos e adereços que também chegavam pelo Cais do Valongo.

Isso fez com que a região que vai da Pedra do Sal até a Praça da República se tornasse um espaço de comércio, moradia, cultos e manifestações negras, como samba e capoeira. Até o início do século 20 a área era conhecida como Pequena África.

Em 1843, 12 anos após a Lei Feijó proibir a importação de escravos para o Brasil, o local foi recoberto por um novo cais, com uma “urbanização cenográfica” para receber a princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, esposa do imperador D. Pedro II, conta Guran. Em 1911, foi aterrado e uma praça, criada na área, hoje a duas quadras do mar.

Escavações realizadas em 2011 como parte do projeto de reurbanização Porto Maravilha, focado na antiga região portuária do Rio, encontrarampartes do calçamento do Cais do Valongo. Desde então foram retirados 507 mil objetos arqueológicos do local, incluindo contas, corais, ferramentas, adereços e uma extensa coleção de cachimbos africanos de barro.

FOTO: MILTON GURAN/DIVULGAÇÃO

Sítio arqueológico do Cais do Valongo
SÍTIO ARQUEOLÓGICO DO CAIS DO VALONGO

Qual a importância de transformar área em patrimônio da humanidade

Desde sua redescoberta, o cais já foi declarado patrimônio carioca e nacional. A candidatura como Patrimônio da Humanidade foi articulada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pela prefeitura do Rio, que enviaram um documento de cerca de 500 páginas para o Comitê do Patrimônio Mundial em janeiro de 2016.

Em setembro deste ano, o local foi visitado por um representante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, um órgão consultivo da Unesco, que avaliou a área e os artefatos encontrados. A decisão final deve sair em junho de 2017.

Caso o status de Patrimônio da Humanidade seja concedido, a preservação da área estará melhor assegurada, afirma Guran. Desde 2011, membros de entidades como a coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura do Rio de Janeiro e a Fundação Palmares reivindicam também a criação no local de um Memorial da Diáspora Africana.

“No Brasil inteiro não tem um museu das raízes africanas, em que você sai sabendo tudo da cultura africana e afrobrasileira”, afirma Guran. Para o antropólogo, um local que conte a história dos negros no Brasil teria grande potencial turístico, em especial para brasileiros e estrangeiros que buscam suas origens africanas.

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