E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, pega em nossas mãos e nos leva para passear pelos calçadões. Nos leva aos bons tempos do calçadão de sua Nilópolis e aos tempos nem tão bons de hoje.
Bom passeio:
“Fui perambular pela cidade Beija-Flor. Assim chamo Nilópolis, município da Baixada Fluminense, famosa pela escola de samba. Uma vez por ano a gente entra em cartaz para mostrar o nosso samba no pé, o nosso maior diferencial. No dia de apuração, da varanda do meu apartamento eu vejo a multidão chegar na quadra nova na expectativa de um final feliz apoteótico para o desfile de carnaval do ano. Por enquanto, é preparação, ensaio.
Cheguei até o centro da cidade a pé. Calçadão reformado. Sabe como é que é, 2024 foi ano de eleições municipais. Por isso deram um trato no visual do bichinho. Mas as más línguas dizem que quando chove aquilo ali vira piscinão. É assim mesmo: todo calçadão tem um quê de Boca do Lixo.
Meu sogro teve duas lojas de roupas no calçadão. Lá pros anos 1970s, anos 1980s. Vacas gordas, época de camisas de linho, de festas grandes, de gerentes de banco lhe dando tapinhas nas costas.
De tudo na vida ficam as recordações, algumas boas, outras nem tanto. Ele tem em casa uma placa de cidadão honorário concedida pela Câmara Muncipal dos Vereadores de Nilólpolis.
Como a maré da economia é traiçoeira, meus amigos. Pouco a pouco as lojas de roupas do Calçadões foram dando lugar a outros estabelecimentos ou a lojas vazias. Saíram o aviário, o estúdio de fotografia, as lojas de roupa do meu sogro.
Hoje em dia no Calçadão da Beija-Flor, há farmácias com seus letreiros coloridos; papelarias que vendem de um tudo; sapatarias; lanchonetes; lojas de telefonia celular, de eletrônicos e de conserto de celulares; além, é claro, dos onipresentes camelôs, que vendem em suas bancas desde réplicas de meias de times de futebol até frutas exóticas fora de estação, passando pela milagrosa pomada de Canela de Velho, que se não sarou vai sarar qualquer coisa que seja.
Resiste uma lojinha de material esportivo, com suas lindas gavetas de madeira de outro tempo, e sua vitrine com seus troféus. Resistem como podem umas duas bancas de jornal. Não me recordo de um bar, restaurante, pé sujo que seja para chamar minha atenção. E olha que por aqui se bebe bem.
Por que venho me estendendo em assunto tão aparentemente demodê? Que maçada. É porque o Calçadão é um patrimônio da cidade onde moro. Você sai da estação de trem e desemboca nele, sem mais nem menos segue fazendo seu passeio de compras nem que seja para, como dizem os americanos, “windowshopping”.
Sempre considerei o comércio de rua como algo vital para a manutenção da identidade de um lugar, de um bairro, de um município. Será que a rua não dá mais para Beija-Flor, é caminho sem volta. Será que não temos vendas no pé, apenas samba? Será que nos tornamos um imenso local de passagem, uma cidade-dormitório em movimento pendular?
Eu me lembro dos passeios com minha família pelo Calçadão de Madureira. Lembro-me também que para espairecer, lá pelos 2015s, um camarada e eu andávamos pelo Calçadão de Campo Grande, muito bom por sinal. A foto da imagem vem de uma loja tradicionalíssima de lá que visitei na semana em que fechava: a Silbene. Vá bene, Silbene.
Lembro-me que nas minhas viagens para fora do Rio de Janeiro, eu também andava por calçadões. Era assim que se passeava. Quem sai pra ver as modas hoje em dia?
Quer dizer, a época do flanador que passa o tempo a observar as galerias da cidade, de certa forma trapaceando as expectativas de comércio, foi a pique.
Talvez a chegada dos shoppings tenha sido o grande ponto de virada na vida dos calçadões. Talvez a expansão do cartão de crédito – trata-se de uma hipótese a ser comprovada: com mais crédito na praça, o pessoal preferiu fazer compras em locais mais da moda, com ampla rede de serviços e supostamente mais segurança. A gente quer se modernizar! Para depois visitar os lugares decadentes como se fôssemos mais modernos ainda.
Para mim, é imbatível melancolia sair da última sessão do cinema e perambular pelas ruas vazias do comércio. É uma sensação esquisita, como se eu descobrisse que a cidade também dorme. Nem que seja com um olho só, porque afinal de contas alguns dos letreiros iluminam, piscam. E a população de rua se sacode, quiçá com uma faca entre os dentes.
É, acho que o comércio de rua não esconde as nossas fraturas sociais. Não esconde de nossas vistas aqueles que vivem da cata do papelão, aqueles que incluem cachaça na dieta, aqueles que vivem dos restos, dos trapos, das trapaças das nossas cidades. A eles talvez se junte o flanador, reduzido agora a um Zé-Mané.
Na minha pobre cabeça ainda resta uma pergunta velha: por que nos açougues à noite havia uma estranha luz lilás? Será que era para espantar as moscas? Meu pensamento voa, as palavras vão a pé enquanto os pés que me doem clamam por um Uber.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.