Por Elizabeth Oliveira, compartilhado de Projeto Colabora –
Rede solidária compra e doa cestas com alimentos da sociobiodiversidade amazônica respeitando a sazonalidade das safras e as tradições culturais
Além do colapso dos serviços de saúde que culminou com a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, outra consequência do agravamento da pandemia da Covid-19, na cidade, tem sido a falta de alimentos para a população economicamente mais vulnerável. Somando solidariedade e lições aprendidas com o fortalecimento de experiências locais de agroecologia, na última década, uma rede formada por profissionais e organizações com projetos de gastronomia sustentável lançou recentemente a campanha Alimenta Manaus.
Essa ação de cidadania que vai ganhando cada vez mais adesões tem como diferencial a doação de cestas que incluem produtos da sociobiodiversidade amazônica, aliando, assim, respeito às tradições alimentares e à sazonalidade das safras regionais. “Comida é direito”, afirma a chef Teresa Corção, presidente do Instituto Maniva, uma das entusiastas da iniciativa, para quem comida também envolve “cultura, afeto e memória”.
Com apoio da Onisafra, uma plataforma de comercialização e distribuição de alimentos de fornecedores locais, esse movimento vem buscando conectar a produção dos pequenos agricultores orgânicos da Região Metropolitana de Manaus (a maioria com dificuldades de escoamento devido às restrições da crise sanitária), às famílias em situação de insegurança alimentar. Desses grupos fazem parte populações indígenas inseridas em contexto urbano e não atendidas por programas sociais governamentais, como os indígenas Sateré Mawé, além de refugiados venezuelanos e outras pessoas desempregadas ou envolvidas com atividades informais que ficaram sem renda devido à pandemia.
A ecochef e merendeira Luizi Viana, integrante da Rede Slow Food Manaus e de outras redes de alimentação sustentável, conta que o movimento Alimenta Manaus vem ganhando mais força ao somar esforços de pessoas que já vinham desenvolvendo ações de fornecimento de alimentos para famílias em situação de insegurança alimentar, durante a pandemia, com outras que pretendem contribuir para o enfrentamento dessa crise de graves proporções.
Ela, com recursos próprios, começou a organizar cestas de alimentos para doar na vizinhança ao tomar conhecimento das dificuldades enfrentadas, além de servir refeições em casa para algumas pessoas conhecidas. “Manaus está vivendo uma situação de guerra”, afirma Luizi, enquanto relata com voz embargada, durante a entrevista por telefone, a gravidade do cenário de falta de alimentos enfrentada por muitas famílias na cidade. “Ficamos sabendo que até mesmo muitos agricultores estavam enfrentando situação de insegurança alimentar por não conseguirem vender seus produtos nas feiras e, consequentemente, não terem renda para sustento de suas famílias”, acrescenta.
Esse paradoxo foi outro motivo que levou à busca de algumas soluções conjuntas que estão se fortalecendo com a campanha. Luizi ressalta que quem atua com algum tipo de comercialização, ou depende desse setor, foi fortemente prejudicado pela pandemia. Ela, por exemplo, precisou fechar a sua barraca de pratos elaborados com produtos amazônicos porque a feira agroecológica da qual participava deixou de ser realizada devido à crise sanitária.
Mas, mesmo tendo salário fixo por atuar como merendeira em uma escola estadual, ela relata ter reconhecido que não poderia continuar doando alimentos, por conta própria, por muito tempo, tendo em vista a necessidade de tantas pessoas. Motivada por essa preocupação, resolveu pedir apoio à rede de ecochefs do Instituto Maniva. “Mandei fotos para a chef Teresa Corção e contei o que estava acontecendo bem próximo de nós. Ela ficou muito sensibilizada e decidiu mobilizar a sua rede para nos apoiar. Essa adesão foi muito importante porque ela teve a ideia de ampliar a campanha”, acrescenta.
As duas se conheceram quando Luizi venceu o concurso “Melhores receitas regionais da alimentação escolar”, realizado pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc-AM), em 2019, com um gratinado de pirarucu, cará e queijo coalho. O prêmio foi uma viagem ao Rio de Janeiro, quando a merendeira pediu para conhecer a chef e preparar para ela um prato com ingredientes amazônicos. Desse encontro e dessa experiência gastronômica, Teresa conta que reconheceu em Luizi uma profissional muito qualificada, além de ter todo o envolvimento com as bases que fundamentam a rede de ecochefs do Instituto Maniva. Foi assim que ela se tornou a primeira merendeira ecochef do país, acontecimento que transformou a sua vida, como faz questão de ressaltar.
Rede de solidariedade tem várias frentes de atuação
Dentre tantos apoiadores, a campanha Alimenta Manaus também conta com a adesão da chef Debora Schornik, do restaurante Caxiri, segundo Teresa Corção, “o melhor da cidade”. Ela já estava apoiando ações de distribuição de alimentos, cedendo inclusive espaço do estabelecimento fechado durante a pandemia para servir de apoio logístico. Mas, sentindo falta de alimentos agroecológicos, vinculados às tradições culturais da região, Luizi conta que Debora sugeriu “as cestas humanizadas”, acrescidas de verduras, frutas e outros itens sazonais adquiridos dos produtores orgânicos com recursos doados.
Atualmente, por exemplo, é época de pupunha, fruto muito apreciado na Amazônia. Abundante, em temporada de chuvas, costuma ser comido cozido (como nos grandes centros são consumidas as castanhas portuguesas). Mas, com essa iguaria, Luizi ressalta que é possível fazer purê, bolos, biscoitos e tantos outros pratos. As ecochefs pretendem, em uma próxima etapa da campanha, enviar vídeos com receitas para as comunidades como mais um reforço à proposta de alimentação saudável a partir de ingredientes regionais sazonais. Perfis como o que ela mantém no Instagram podem contribuir para a divulgação.
Nesse movimento solidário, vários cachos de pupunha já foram doados por Jorge Luiz dos Santos, agricultor considerado uma referência na sua comunidade. O produtor também doou abacaxi “o mais doce de todos”, segundo Luizi, além de tucumã, mandioca (chamada de macaxeira na região), espinafre amazônico, couve e cheiro verde. Ele integra a Associação dos Produtores Orgânicos Renascer, localizada no município de Careiro da Várzea, Região Metropolitana de Manaus. Apesar da proximidade com a capital amazonense, não é simples a logística de acesso à localidade (uma área de várzea que passa uma temporada alagada), o que dificulta ainda mais o escoamento da produção.
Integrante da Rede Maniva de Agroecologia e do movimento Slow Food Manaus, Renata Farias também aderiu à campanha, somando esforços com os seus organizadores. Ela explica que essa rede tem dez anos de atuação em prol da construção da agricultura orgânica no estado do Amazonas, segmento muito impactado pelo fechamento das feiras. Segundo relata, a pandemia tem impulsionado a entrada desses produtores em atividades informais para conseguirem alguma renda.
Além dos riscos sanitários envolvidos, outra preocupação da rede tem sido com a saída deles do campo, onde já haviam sido mobilizados muitos esforços de organização. “Mantê-los com saúde e protegidos é fundamental. Por isso, essa campanha se soma a outras estratégias que vêm sendo utilizadas para escoamento da produção orgânica”, observa Renata.
Como parte das ações ela menciona que uma plataforma para vendas via internet está prestes a entrar no ar, que já foram realizadas vaquinhas online para apoiar os produtores, além da comercialização por grupos de WhatsApp. Embora sejam muitos os desafios para operacionalizar essa logística, a mobilização é considerada fundamental para “manter os agricultores no campo e as comunidades da cidade recebendo alimentos de altíssima qualidade para que se mantenham com saúde durante o enfrentamento da Covid”.
Máscaras com arte indígena geram renda e proteção
Impactados pela interrupção das atividades turísticas que garantiam as vendas de artesanato, além de desassistidos por programas sociais governamentais por viverem em contexto urbano, os indígenas Sateré Maués, de Manaus, começaram a enfrentar muitas dificuldades durante a pandemia. Como alternativa a esse cenário que gerou insegurança alimentar, cerca de 20 pessoas, em isolamento social nessa comunidade, passaram a produzir máscaras personalizadas com grafismos indígenas que estão sendo adquiridas pela campanha Alimenta Manaus para envio como recompensa aos doadores.
Samela Sateré Mawé, ativista ambiental, estudante de biologia e consultora conta que em várias comunidades dessa etnia, a maioria contraiu o coronavírus na primeira onda. “Nessa segunda onda, não tivemos casos. Todos estão redobrando os cuidados com uso de máscaras, álcool gel e sabão”, afirma. “Assim, a gente está conseguindo, na medida do possível, se proteger”, conta a também integrante da Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (AMISM), organização que busca ampliar a visibilidade da causa indígena assim como apresentar a sua produção artesanal em espaços online como o perfil do Instagram.
Sobre a campanha Alimenta Manaus, Samela afirma estar motivada com essa frente de mobilização que envolve uma diversidade de atores sociais que, além das compras das máscaras, visa à destinação de cestas de alimentos às comunidades indígenas. “Eles ajudam bastante porque também pensam na nossa alimentação de forma saudável com alimentos livres de agrotóxicos que compõem a nossa dieta”, observa a ativista.
Teresa Corção destaca, sobre as recompensas para os doadores da campanha Alimenta Manaus, que foram sugeridos três valores: quem doa R$ 60 e R$160 recebe uma máscara artesanal confeccionada pelas mulheres da AMISM, enquanto aos que doarem R$260 serão enviadas duas máscaras pelo Instituto Maniva, mediante comprovante de depósito e endereço.
Muito motivada pelas adesões da sua rede à campanha Alimenta Manaus, Teresa tem expectativas de que esse movimento da sociedade possa inspirar não somente um apoio pontual, mas ações duradouras no futuro, em Manaus, “cidade cosmopolita onde há um movimento agroecológico forte”. “Essa mobilização pode virar mais um programa do Maniva com objetivo de fortalecer os laços com os agricultores e a cultura alimentar da região”, adianta a chef, lembrando, ainda, que essa iniciativa em rede reflete fortemente as orientações dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas, com ênfase no ODS 17, dirigido às parcerias e meios de implementação das ações conjuntas.
Campanha pode gerar legado para além da ação emergencial
O engenheiro agrônomo Macaulay Abreu, CEO da Onisafra, lidera essa plataforma de distribuição de alimentos, especializada nas peculiaridades logísticas amazônicas. Desde o início da pandemia, a start up amazonense já tinha se somado a outras organizações governamentais e não governamentais para distribuir cestas básicas às populações em situação de insegurança alimentar, a partir de um movimento que foi chamado de Mercado Solidário. Ao #Colabora, ele conta como essa experiência veio unir esforços à campanha Alimenta Manaus podendo construir um legado para além da ação emergencial. Assim como Teresa Corção, ele também acredita em futuros desdobramentos dessa mobilização cidadã.
#Colabora – Como a Onisafra ingressou nesse movimento de distribuição de alimentos?
Macaulay Abreu – No início da pandemia, a gente se juntou a outras organizações de Manaus como a Associação do Polo Digital, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas e vários outros parceiros para criar o Mercado Solidário. Esse é um mecanismo pelo qual a gente capta as doações, adquire os produtos de fornecedores locais (agricultores e outros pequenos e médios empreendimentos que trabalham com alimentos) e faz as doações para pessoas e instituições que atuam com famílias em vulnerabilidade social.
Como a Onisafra se somou às ações do Instituto Maniva e outros parceiros?
Com a segunda onda da Covid, em Manais, o trabalho com o Mercado Solidário continuou sendo realizado e a Onisafra acabou se conectando com o Instituto Maniva e se juntando a outras instituições e movimentos, como a Rede Maniva de Agroecologia e a Associação de Produtores Extrativistas, para criar a campanha Alimenta Manaus. A estrutura dessa campanha tem como objetivo central captar recursos para adquirir alimentos inicialmente de agricultores orgânicos e, caso tenha demanda muito alta, de agricultores familiares não orgânicos, para distribuição às comunidades em vulnerabilidade social.
Quais as suas expectativas em relação aos desdobramentos dessa ação?
As instituições envolvidas já têm algum tipo de ação e a gente visualiza que essa conexão da rede local, com um instituto que tem uma rede para além do estado do Amazonas, acaba favorecendo o alcance de mais pessoas interessadas em ajudar a campanha Alimenta Manaus. Embora essa mobilização tenha sido pensada para ações pontuais, o seu enfoque é voltado para solucionar problemas estruturais. Assim, a iniciativa não se resume a uma campanha de doação, mas a uma resposta da sociedade organizada para uma problemática que a gente vem enfrentando não somente devido à pandemia, no que tange ao acesso básico de algumas comunidades .
Como as atribuições são divididas e como ampliar o impacto das ações?
O Instituto Maniva vem coordenando a frente de divulgação, enquanto nós, aqui em Manaus, estruturamos todo o processo logístico de contato com os agricultores e as famílias que serão beneficiadas. Eu visualizo que essa é uma campanha que vem para agregar ao que já vem sendo feito pela gente e, ao agregarmos ao nosso trabalho estruturas que trazem mais robustez, melhor será para conseguirmos causar mais impacto.