Campanha precoce para fomentar viagens domésticas promove ação de marketing no dia em que o Brasil supera o marco de um milhão de casos de covid-19 e recebe críticas

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Por Carla Lencastre, compartilhado de Projeto Colabora – 

Gol e entidades de turismo levam influenciadores digitais a Foz do Iguaçu no pico da pandemia

Depois de afrouxar medidas de isolamento, Foz do Iguaçu teve alta de casos de covid-19 e voltou atrás (Foto Carla Lencastre)

Sexta-feira, 19 de junho. O Brasil supera os números redondos, simbólicos e tristes de um milhão de casos e 50 mil mortos por covid-19, segundo dados do consórcio de imprensa. Nesse mesmo dia, duas influenciadoras digitais embarcam em um voo da Gol de Guarulhos para Foz do Iguaçu para estimular viagens domésticas em uma campanha do recém-criado Movimento Supera Turismo. Ainda em 19 de junho, Foz do Iguaçu, que reabrira as principais atrações turísticas no dia 10, supera seu número de covid-19. São registrados 48 casos, um aumento de 95% em relação ao recorde anterior, de 15 de junho. A ação com as influenciadoras vira o assunto do fim de semana nas redes sociais de quem trabalha com viagens, produção de conteúdo de marca ou marketing digital. Pelas razões erradas.




Milhões de pessoas no país dependem direta ou indiretamente do turismo. E outros tantos não veem a hora de viajar novamente a lazer. Mas recuperar a segurança para passear não depende apenas de abertura de atrações, promoções de passagens aéreas ou de ações de marketing como a criada pelo Supera Turismo

Domingo, 21 de junho. Foz do Iguaçu divulga que o número de infectados no município subiu 64,5% em relação à semana anterior. O Parque das Aves, na entrada do Parque Nacional e uma das principais atrações da cidade, decide fechar novamente. Sem data prevista de reabertura porque, diz em comunicado publicado no facebook, “uma retomada econômica só é possível se houver consciência plena da parte de cada um quanto à segurança comunitária de saúde”. Prefeitura anuncia lockdown de 14 dias em dois bairros de Foz do Iguaçu. Fronteiras com a Argentina e o Paraguai continuam fechadas. E em todo o estado do Paraná há restrições para a venda de bebida alcoólica e o consumo na rua entre 22h e 6h.

Timing perfeito para uma tempestade, não?

Vamos voltar a viajar, mas não agora

A viagem patrocinada das influenciadoras a Foz do Iguaçu, uma delas levando junto o filho de 10 anos, provocou ao longo de todo o fim de semana “notas de repúdio” informais no Twitter e no Instagram de blogueiros, jornalistas de turismo, representantes de empresas da área de viagens, especialistas em marketing digital, médicos, viajantes em geral. Além de dezenas de comentários diretos (muitos de apoio) nas fotos das influenciadoras posando de máscara e exibindo o cartão de embarque no celular ao lado de um totem vazio de medição de bagagem de mão da Gol. “Nosso turismo está começando a retomada”, anunciou uma delas. Com as reações negativas, principalmente de gente que também trabalha no setor de viagens, continua respeitando a quarentena e o distanciamento social e tendo prejuízos financeiros, legendas foram editadas; comentários, apagados, e fotos da campanha, excluídas.

No vídeo de apresentação do Movimento Supera Brasil o locutor conclama: “Esta indústria precisa que você continue viajando e o Brasil precisa de você viajando pelo Brasil. (…) O Brasil inteiro depende de você”. De fato, milhões de pessoas no país dependem direta ou indiretamente do turismo. E outros tantos não veem a hora de viajar novamente a lazer. Mas recuperar a segurança para passear não depende apenas de abertura de atrações, promoções de passagens aéreas ou de ações de marketing como a criada pelo Supera Turismo.

Não é hora de fomentar o turismo nacional. Nem o regional. Nem o local. Um bom exemplo, ou melhor, um exemplo ruim, vem justamente dos lugares que reabriram para o turismo, como Foz do Iguaçu. Ou Gramado. Entre o final de maio e o início de junho, a cidade da Serra Gaúcha que vive do turismo reabriu atrações, comércio, restaurantes. Hotéis foram autorizados pela prefeitura a operar com até 70% da capacidade máxima. Em 15 de junho, depois de um movimentado feriado de Corpus Christi, o governo do Rio Grande do Sul incluiu Gramado em uma zona estadual sob bandeira vermelha, que significa alto risco de contágio e durante a qual somente serviços essenciais podem funcionar. Esta semana, depois de forte lobby municipal e empresarial, as duas cidades voltam para a bandeira laranja.

É difícil justificar uma campanha de marketing promovendo viagens de avião a lazer quando a única coisa segura a se fazer no momento é continuar em casa se você pode. Além de incentivar um comportamento de risco, a ação esbarra em uma questão prática: a atualmente inexistente malha aérea brasileira. A Latam, por exemplo, não operou nenhum voo de passageiros no sábado 20 de junho. A Gol, apoiadora da campanha Supera Turismo, está voltando a voar lentamente. Semana passada a companhia anunciou que em julho o número de voos deve ser em torno de 20% a 25% daqueles no mesmo período de 2019. Apenas no próximo verão, em janeiro de 2021, a empresa pretende voar para todos os destinos de antes da pandemia. Mesmo assim, com frequência menor. Se algum açodado morador do Rio de Janeiro for influenciado pela ação de marketing da Supera Turismo e resolver trocar a questionável ida à praia no fim de semana por uma escapada para Foz do Iguaçu no próximo sábado não encontrará voo. Seja pela Gol, Latam ou Azul.

A Rede Brasileira de Blogueiros de Viagem (RBBV), com mais de 1.300 membros, fez uma postagem sobre esta “retomada” no Instagram @rbbviagem: “A RBBV é totalmente a favor da retomada do turismo (…), mas não concorda, em nenhuma hipótese, com viagens agora, já, nesse momento, que tenham a finalidade de fomentar o turismo no meio de uma pandemia. Não é a hora”. Uma ressalva: a postagem reflete a opinião da coordenação, mas não de todos os blogueiros da rede, já que uma das influenciadoras de Foz do Iguaçu é membro da RBBV.

O que é o Movimento Supera Turismo

No Brasil, o turismo representou 8,1% do PIB em 2019. Este ano, segundo previsão da Fundação Getúlio Vargas em abril, a queda no setor deve ser de 39%. O Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC, na sigla em inglês) estimou, também em abril, que mais de 100 milhões de pessoas perderão seus trabalhos na área este ano em todo o mundo (em 2019 o turismo representou 10,4% do PIB mundial). O setor é um dos mais afetados pela pandemia, inclusive no Brasil. Não é ruim a ideia de estimular o turismo doméstico quando for seguro viajar. Mas este momento não chegou, e ainda não sabemos quando chegará.

O Movimento Supera Brasil foi lançado em 1º de junho e reúne as entidades mais importantes da área, como a Associação Brasileira de Agentes de Viagens (Abav), a Associação Brasileira de Agências de Viagens Corporativas (Abracorp) e a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa). Estas três assinam o vídeo de apresentação do projeto. O Conselho Consultivo reúne nomes conhecidos do setor e um representante do Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Turismo (Fornatur). Entre os apoiadores estão empresas como Gol, Cartões Elo e Movida Aluguel de Carros. A iniciativa tem a parceria dos canais de televisão e rádio da Bandeirantes, da mídia especializada e de nove influenciadores. O site do movimento tem a lista completa de organizadores, apoiadores e participantes. Até agora não houve manifestação de nenhum deles sobre o timing da viagem a Foz do Iguaçu.

Ana Paula Passarelli, conhecida como Passa, especialista em marketing de influência e COO da Brunch Agency, publicou um thread no twitter @apassarelli, no dia 20 de junho, sobre “como fazer um marketing de influência muito errado”: “No dia que chegamos em um milhão de casos de covid-19 a @VoeGOLoficial manda influenciadora pra fazer turismo”. Em seguida Passa destaca um ponto fundamental: “O discurso da retomada não é sobre experiências, mas sobre cuidado, empatia e, sobretudo segurança”. Conclusão: “Tudo o que ficou de residual dessa ativação foi que nenhuma das marcas envolvidas entendeu o estado atual do país e tentou se valer do discurso de ‘retomada’ no pior momento.”

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