Campos de Extermínio mental – A classe mídia e o mainstream do Golpe

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Por Bajonas Teixeira Brito Junior, O Cafezinho – 

Ao que tudo indica, a classe média que serviu de massa de manobra para o golpe tornou-se uma autêntica classe mídia, e isso tem que ser entendido a partir domainstream que dominou no Brasil nos últimos anos.  Para essa nova classe mídia, a televisão foi, em especial na última década e meia, um vasto campo de extermínio mental. Um dos efeitos dessa liquidação em massa da inteligência foi o ódio à cultura.  Basta atentar para a perseguição aos artistas, chamados de vagabundos, ao clima de caça às bruxas instaurado contra a Lei Rouanet, às agressões à classe artística nas redes sociais.

Imagem 51 de Golpe Globo

É difícil, porque vivemos todos sob o peso dessa atmosfera, ganhar a distância suficiente para fazer o diagnóstico desse período. Mas podemos esboçar um breve inventário da tragédia que foi a programação servida na mesa durante a última década e meia. Tomo esse período de uma década e meia porque já estamos na 16ª edição do Big Brother, portanto, já temos quase uma geração de brasileiros que nasceu e cresceu sob esse império da visibilidade, da invasão de privacidade, do desejo de devassar com o olhar espaços que, em principio, estariam resguardados dessa intrusão.




Entre outras coisas, talvez sejam esses dezesseis anos de Big Brother, mas não só eles, que tornaram tão aceitáveis os vazamentos de delações premiadas (e até as próprias delações), a divulgação de conversas grampeadas, a exposição de espaços privados (como o interior dos cômodos do sítio que a Lava Jato quer que seja de Lula a qualquer preço). Sem os vícios adquiridos nesses anos de reality shows, seria difícil que não soasse repulsivo à maioria dos brasileiros esse regime de invasão, espionagem e divulgação criminosa. Mas a mídia nos anestesiou contra a indignação.

Para se ter um breve vislumbre da dimensão do poder de impacto dessas mídias, é bom ter presente que o Brasil tinha em 2014, só contando as TVs comerciais, 6.197 retransmissoras, com 272 geradoras sendo 39 com sinal digital. A Rede Globo sozinha controla 124 dessas emissoras.  Já para as rádios, contando apenas AM e FM, as emissoras chegam a 3.089. Dessas rádios, a Globo informa possuir 11 emissoras próprias e 61 afiliadas. Esses números não deixam dúvidas quanto ao poder e ao impacto dessa mídia privada para impor interesses e reduzir as cabeças.

Mas o mais nefasto é quando se constata que o poder de fogo da artilharia pesada desse aparato da mídia se concentra em uma programação extremamente tóxica. O inventário que faremos aqui está longe de ser exaustivo. Vejamos:

1) Tivemos 16 anos de Big Brother Brasil, aos quais se deve acrescentar as inúmeras outras variações do modelo reality show no país. Uma wiki dedicada ao tema lista nada mais nada menos que 86 programas nessa modalidade no período. O que isso representa em termos de idiotização em massa está na casa do imponderável ou dos números astronômicos. O pior é a avidez pela privacidade alheia, a incitação do desejo de sobrepujar qualquer barreira posta à visão. O que esse modelo constrói é um tipo de delinquência visual que, no fundo, nos ensina que nenhuma interdição (e as leis são interdições) devem ser respeitada.

2) Outro feijão com arroz na telas dos brasileiros tem sido o telejornalismo policial em programas como Cidade Alerta, Brasil Urgente e Linha Direta, que celebrizaram o tipo de narrador autoritário, grosseiro, que simula uma caricatura de apresentador mais próxima de um bicheiro que de um comunicador de massa.  Além dos clássicos das grandes emissoras, como Datena, o formato se reproduz às centenas pelo país inteiro, em não só na TV mas também na forma do radiojornalismo policial. O medo de ser vítima daqueles tantos crimes narrados diariamente e a busca de proteção em figuras fortes (teatralizadas pelos próprios apresentadores), é um ingrediente antidemocrático. Tanto pela descrença que infunde – e uma persistente aversão aos direitos humanos, alimentada pelo bordão de que só se protege o bandido e não o “homem de bem” –, quanto pela ideia de que a solução para o crime passaria por alguma figura autoritária (juiz, justiceiro, delegado, etc.) que poria fim ao estado de violência. O debate sobre as origens da violência, o debate público e qualificado, não tem lugar nessa programação.

3) O veneno é servido na mesa também na forma dos programas humorísticos que, sob o manto da crítica ao politicamente correto, investem na propagação do assédio moral (Danilo Gentili, Rafinha Bastos, o falecido CQC, o Pânico, etc.). Uma das faces interessantes desse humorismo é que se apresenta como moderno e inovador quando, na verdade, reedita e até agrava os defeitos do velho humorismo tacanho. Lembrem-se das diversas piadas sobre o estupro protagonizadas por Danilo Gentili. Um exemplo é a piada contada e recontada em inúmeros shows pelo Brasil, um clássico da imbecilidade, desde 2011:

“─ Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia… Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço.”

Essa dose cavalar de insensatez foi reprisada em uma das pérolas do humorista em 2012, seguindo o mesmo padrão de apologia à violência sexual contra a mulher:

Imagem Twitter Gentili

Lembremos também que Gentili é uma das figuras que, através de diversas investidas grotescas, reeditou as práticas racistas que explodiram nas redes nos últimos anos. A sua ‘piada’ perguntando a um rapaz negro que o questionava no Twitter quantas bananas queria para acabar com uma discussão, foi um marco nesse sentido. Não há surpresa, principalmente depois que o caso foi julgado e o humorista absolvido por um juiz bem humorado, em que atrizes, apresentadoras e cantoras negras tenham sofrido barbaramente nas mãos dos racistas nos últimos meses.

4) Um enorme reforço a essa tendência racista vem com a predominância na TV brasileira das apresentadoras louras, por um lado, e da quase exclusão completa das negras, de outro. Não se discute a qualidade ou o talento, mas apenas o fato de que a TV insista  em privilegiar e impor um único modelo de beleza através da seleção de apresentadoras louras: Angélica, Xuxa, Eliane, Adriane Galisteu, Ana Maria Braga, Ana Hickmann, Sheherazad, Andressa Urach, etc. O mais trágico, nesse caso, é que esse modelo se repete numa infinidade de programas locais, tanto na modalidade do  entretenimento quanto nas bancadas dos telejornais regionais. Além dos nomes citados, o Brasil tem hoje centenas de apresentadores louras que se sucedem ao longo do dia nas telas de muitos milhões de espectadores pelo país afora.

E que ninguém diga que a televisão brasileira, ao conceder esse monopólio às louras, segue uma tendência internacional. Muito pelo contrário. A apresentadora mais bem paga do mundo, e mais conhecida na atualidade, é Oprah Winfrey, uma mulher negra e de meia idade.

5) Outro aspecto significativo dessa mídia é transformação crescente dos Portais em locais de exposição de corpos femininos, retalhados segundo uma lógica de fragmentação mental semelhante a que exibe peças de carne em um açougue. A mulher é exposta em partes (“barriga”, “bumbum”, “coxas”, etc.) sobre as quais se aplicam rótulos classificatórios (por exemplo, a barriga é rotulada  como barriga sarada, barriga negativa, barriga trincada, barriga chapada, barriga tanquinho, barriga definida, barriga perfeita, etc. ). Cada vez mais se impõe um modelo que se assemelha aos manequins de vitrine, quer dizer, como um objeto sem vida. O interessante desse modelo de corpo, o que faz dele um modelo de corpo morto, é que ele desconhece duas coisas, essenciais na beleza dos corpos vivos: o detalhe e os gestos. O detalhe é o que uma percepção sensível apreende no outro e que são singularidades intransferíveis (a beleza de uma boca, um nariz, ombros, de sardas, de tonalidade da pele, etc.). O gesto, evidentemente, é a expressão de um corpo com a carga de personalidade que ele carrega. A destruição dessas referências é um modo de privar os espectadores do conhecimento e da experiência, e colocar em seu lugar algo que qualquer imbecil pode reconhecer e valorizar e que, na verdade, só reconhece e valoriza porque é imbecil (o corpo sarado, a barriga trincada, etc.).

O que tem de monstruoso e trágico nessa compreensão do corpo ficou patente justamente com um dos produtos extremos dessa nossa mídia nos últimos tempos, a história da modelo e apresentadora Andressa Urach. O regime químico monstruoso ao qual submeteu seu corpo, para se enquadrar e se manter dentro de certa estética do corpo objeto, foi denunciado pela própria degradação física extrema que acabou por se manifestar. E o espetáculo chegou ao flerte total com o horror, quando a modelo posou no hospital e vendeu as imagens das suas chagas. E nisso, na verdade, não poderia haver nada de errado já que era o mesmo comércio do corpo que ela fazia enquanto apresentadora e musa e, como confessou em livro logo depois, também como prostituta. Enfim, o modelo do corpo parcelado e vendido nos Portais talvez tenha mesmo por base, como seu modelo implícito, o mercado da prostituição. E ao tentar seduzir o leitor através da venalidade desses corpos retalhados, a mídia não faz outra coisa que degradar a sociedade num imenso sistema de meretrício.

6) Muito próximas dessa exibição do corpo como objeto aparecem ainda duas modalidades de exposição violadora: a dos assassinatos flagrados por câmeras de segurança e a de cadáveres originados de mortes violentas, seja de crimes ou acidentes de trânsito. Esta segundo modalidade não é o carro chefe das redes nacionais de TV e dos grandes portais na internet, mas não está ausente deles, aparecendo com relativa frequência. Já nas televisões regionais, em especial no interior do país e nos programas do telejornalismo policial, chega-se ao paroxismo de exibir da forma mais crua corpos mutilados, vítimas agonizantes, etc. É uma normalização do obsceno em grande escala. Nessa obscenidade os grandes portais investem também, mas o fazem através daquela primeira modalidade, a dos vídeos das câmeras de segurança.  A diferença é que em grande parte dos casos, os assassinatos das câmaras de segurança são encobertos. Há alguns anos era comum que fossem apresentados mas hoje, com o público já viciado, basta apresentar algumas cenas do que as câmeras registraram.

O quadro geral é esse. Muitas coisas poderiam ser acrescentadas a ele. Por exemplo, o imenso universo do que Manuel Castells chamou de auto-comunicação de massas (as redes, os blogs, o compartilhamento de mensagens, vídeos e imagens pelos celulares, etc.).  Se entrássemos aqui o horror só faria crescer. Certamente, nesse caso, temos também muitas tendências de uma nova mídia, livre dos vícios nefastos da grande mídia brasileira. Contudo, viceja ai também o pântano da submídia que repercute, até de forma mais chocante, o universo da violência presente nas grandes redes.

Muito provavelmente, sem que a percepção fosse trabalhada maciçamente por essas formas que violam o pensamento, a compreensão, o gosto, a experiência do que é aceitável e do que não é, as interdições em relação ao mundo público e ao mundo privado, e que promovem atitudes e personagens antidemocráticos, o golpe não teria espaço para vingar no Brasil. Compreender as diversas regressões mentais, sociais, políticas e estéticas operadas pela mídia dominante no Brasil é a tarefa prévia para imaginar um sistema de comunicação democrático. Certamente, se houver luz e câmera no final do túnel escuro que atravessamos hoje, não bastará que a comunicação ganhe caráter público. Ela terá que começar encontrando formas de curar as lesões profundas causadas por esses anos em que, para a maior parte da população brasileira, a mídia tem funcionado como um campo de extermino mental.

Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas, e professor do departamento de comunicação social da UFES.

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