Atuação política do presidente do BC é naturalizada pela mídia corporativa, deixando mais evidente que o caráter “técnico” da condução da política monetária é pura ficção
Por Glauco Faria, compartilhado de Fórum
Na entrevista concedida pelo então candidato do PSL à presidência ao Jornal Nacional, em agosto de 2018, Paulo Guedes foi tema de três intervenções do apresentador Willian Bonner. O jornalista parecia querer arrancar de Jair Bolsonaro um compromisso de que o seu anunciado ministro ficaria até o fim de um eventual mandato, a despeito de qualquer arroubo que um presidenciável, tido como pouco confiável, pudesse ter ocupando o Palácio do Planalto.
Ali, o futuro presidente firmava um compromisso com o chamado mercado, que nunca se importou com arranjos democráticos ou sentiu vergonha de se aliar a projetos autoritários de poder. Guedes se tornava o avalista do futuro governo Bolsonaro e a agenda econômica que interessava à classe rentista estava assegurada.
Se já era incomum um candidato à Presidência anunciar e se atrelar a um futuro ministro com tanta antecedência, agora a racionalidade neoliberal que gestou e mima a extrema direita brasileira até hoje conseguiu ir mais além: produziu um candidato a ministro de um possível candidato à presidência da República a mais de dois anos da eleição.
Não é surpresa a “sinalização” de que o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, teria aceitado ser ministro da Fazenda em um eventual mandato do hoje governador paulista Tarcísio de Freitas, desde já presidenciável preferido da Faria Lima e de parte da mídia. O que deveria surpreender é como um dirigente de um órgão responsável pela política monetária, que jornalistas diariamente atribuem a qualidade de “técnico”, pode fazer política cotidianamente como se fosse algo normal.
Campos Neto e a naturalização do absurdo
Em seu livro A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação, o escritor e juiz Rubens Casara fala a respeito da naturalização do absurdo produzida pelo neoliberalismo. Aponta que “inviabilizam a resistência ao que deveria ser entendido como inaceitável ou contraditório de um ponto de vista ético”.
Tendo isso em vista, o que é aceitável dentro da conduta do presidente do BC? Uma das justificativas para a defesa a independência do Banco Central era de que seria necessária uma atuação que assegurasse a eficiência da política monetária, com base em decisões técnicas e não políticas.
No entanto, a realidade é bem diferente. Nomeado por Jair Bolsonaro, a “independência” de Campos Neto se dá apenas em relação ao atual governo, o primeiro obrigado a conviver com uma autoridade monetária que não escolheu. Em palestras, eventos de investidores e mesmo na sua agenda de reuniões, o dirigente se mostra alinhado com o grupo político que o escolheu.
Assim, seria natural que fosse questionado pela imprensa se seu comportamento e suas declarações, que interferem inclusive no próprio comportamento do mercado quando, por exemplo, ajudam a elevar as taxas de juros futuros, não têm como objetivo beneficiar ou prejudicar determinado segmento político.
Mas não há nada. O silêncio da mídia corporativa fala por si. A sociedade deve acreditar no mito do “homem bom” ou, no melhor jargão da extrema direita, no “homem de bem”, que só quer o melhor para o país. Não deve passar pelo escrutínio da opinião pública ou nem devemos discutir o desenho institucional que dá tanto poder a alguém não eleito, afinal, não podemos atrapalhar seu trabalho, não é mesmo?
Defesa da democracia: só quando convém
Desta forma, se legitima que Campos Neto possa falar sobre tudo, inclusive palpitar fora do seu espaço, sobre política macroeconômica, ou tecer loas, lembrando de seu avô, o economista Roberto Campos Neto, à “redução da intervenção do Estado na economia” e à defesa de se “flexibilizar as relações do mercado de trabalho”. O caráter essencialmente ideológico e nada técnico lhe é desculpado, já que a cartilha é a mesma de quem costuma julgar severamente quem sai da linha.
Novamente é preciso recorrer a Casara. Ele afirma que, no neoliberalismo, “dá-se a primazia do homem empresarial, com o apagamento dos direitos e garantias fundamentais, em favor da ilimitação do lucro. Tem-se, então, o ‘desenvolvimento de uma lógica geral das relações humanas submetida à regra do lucro máximo”. A falta de limites do atual presidente do BC representa não só seus próprios interesses como também os dos grandes grupos de comunicação, hoje financeirizados como boa parte do setor produtivo brasileiro, que lucram com os juros elevados e a lógica do Estado mínimo, hoje incorporada ao governo de Tarcísio de Freitas, que promove a privatização de escolas e recrudesce a violência estatal sobre segmentos já excluídos da sociedade.
A defesa da democracia formal por parte de alguns setores da sociedade só se dá quando convém, não por convicção, e absurdos institucionais são aceitos e incentivados, cavando um poço sem fundo do qual, mas adiante, será difícil sair.