Canta meu sabiá, voa meu sabiá

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Biógrafo da cantora lendária, que será enredo da Portela em 2019, resume a trajetória dela numa lista

Clara Nunes: relançamento de biografia e enredo na Sapucaí de uma artista fundamental da música brasileira. Foto de Wilton Montenegro (Divulgação)
Clara Nunes: relançamento de biografia e enredo na Sapucaí de uma artista fundamental da música brasileira (Foto de Wilton Montenegro/Divulgação)

Clara Nunes (1942-1983) é uma das maiores e mais importantes estrelas da canção popular do Brasil de todos os tempos. Iluminada, sua obra atravessa gerações. É rica em poesia e extremamente relevante e simbólica por tratar de  questões silenciadas na sociedade brasileira em período controverso, pautado pela anulação dos direitos civis.

Clara converteu o canto em instrumento de conciliação e fez da própria arte uma espécie de tese acadêmica, por meio da qual propôs imprescindíveis reflexões acerca da identidade de gênero, etnia e credo. Levantou debates sobre o preconceito étnico-racial e a intolerância religiosa, quando esses temas ainda se apresentavam timidamente no Brasil – mesmo diante da eclosão de uma série de iniciativas com vistas, por exemplo, à garantia das liberdades individuais e coletivas do negro, como a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba), o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Pastoral do Negro da Igreja Católica.




Capa da biografia de Clara que ganhou nova versão (Divulgação)
Capa da biografia de Clara, escrita por Vagner Fernades, que foi relançada este ano (Divulgação)

Discorrer sobre Clara Nunes é, acima de tudo, trazer luz à história sociopolítica e sociocultural do país. A seguir, cinco tópicos biográficos que ajudam a elucidar a importância dessa singular personagem, que será o enredo da Portela em 2019, sob assinatura de Rosa Magalhães, a maior vencedora de títulos em atividade no Carnaval carioca.

1. Clara Nunes das Gerais e do Brasil

Clara Nunes nasceu na cidade do Cedro (MG), distrito de Paraopeba, que se emanciparia em meados de década de 1950, passando a se chamar Caetanópolis. A cidade recebeu o nome de batismo em função da fábrica de tecidos Cedro e Cachoeira, na qual Clara e parte de sua família trabalharam. Órfã de pai e mãe, ela começou a exercer a função de tecelã já na adolescência, sonhando desde a infância com a carreira artística. Participou de inúmeros concursos de talentos na cidade natal e, quase sempre vencedora, ganhava como prêmios latas de talcos e vidros de perfumes.

Aos 16 anos, pediu demissão da fábrica interiorana, deixando Cedro rumo a Belo Horizonte, onde continuaria a trabalhar como tecelã na Companhia Industrial Renascença. Uma vez instalada, pôs em prática o sonho de ser artista cantando em quermesses nas igrejas e em festas da empresa. E foi em uma das barraquinhas montadas num evento católico que conheceria Jadir Ambrósio, aquele que a levaria para participar, pela primeira vez, de um programa de calouros na Rádio Inconfidência.

Neste mesmo período, Clara deu início a um romance com Aurino Araújo, filhos de fazendeiros ricos e irmão do cantor e compositor Eduardo Araújo. Na batalha pela carreira, apresentou-se como crooner em várias casas noturnas de Belo Horizonte, como a Meia-Noite, Triunfo, Peter’s Bar, Almanara, conhecendo nomes, como Wagner Tiso e Milton Nascimento.

Com o apoio de Jadir de um lado e de Aurino Araújo do outro, Clara se lançaria em concurso que a catapultaria em definitivo para o mundo artístico: a Voz de Ouro ABC. Vencedora da etapa mineira e terceira colocada na fase nacional, ganhou como prêmio da Odeon a gravação de um compacto e, posteriormente, do primeiro LP. Veio para o Rio de Janeiro com a ajuda de Aurino e se instalou num apartamento no qual moravam Carlos Imperial e Eduardo Araújo.

Amigo de Imperial, então diretor artístico da EMI, Aurino pediu ao amigo ajuda para alavancar a carreira da namorada. E foi assim que Imperial deu a Clara, após longa resistência pelo fato de não gostar do estilo romântico da cantora, a música (composta por ele em parceria com Ataulfo Alves) com que ela despertaria, pela primeira vez, a atenção da mídia: “Você passa, eu acho graça”, canção de trabalho de seu segundo e homônimo álbum.

2. Clara, o iê-iê-iê e os festivais

O ingresso de Clara no mercado fonográfico se deu por meio do universo romântico. A EMI Odeon tinha como meta convertê-la em um Altemar Dutra de saias. Os intérpretes do sexo masculino eram os grandes astros das gravadoras, que proporcionavam lucros astronômicos com vendas de álbuns. Clara seria uma tentativa da companhia para mudar esse quadro. Após ficar em terceiro lugar na etapa nacional do concurso Voz de Ouro ABC, foi convidada a entrar em estúdio e a registrar em vinil o primeiro trabalho, “A adorável voz de Clara Nunes”, em 1966.

Justamente nesse período, em que emprestou voz a um repertório com o qual não se sustentaria posteriormente, gravaria versões de músicas italianas e francesas, além de uma série de boleros. Na busca pela consolidação da carreira, flertou com o movimento jovem-guardista, liderado por Roberto Carlos.  Chegou a participar de três filmes interpretando canções desse universo (“Na onda do iê-iê-iê”, “Carnaval, barra limpa” e “Jovens pra frente”). Logo em seguida, passaria a defender músicas em festivais universitários ao lado da turma do MAU (Movimento Artístico Universitário), que tinha como destaques Aldir Blanc, César Costa Filho, Ivan Lins, Gonzaguinha, entre outros. Nenhuma das tentativas alavancou a carreira da artista.

Depois de “A adorável voz de Clara Nunes”, “Você passa, eu acho graça” e “A beleza que canta”, três fracassos comerciais, Clara, com a produção do então radialista Adelzon Alves (ela desejava Hermínio Bello de Carvalho, mas o nome foi vetado por Imperial), lançaria em 1971, o álbum “Clara Nunes”, partindo para nova fase – a do resgate do samba e das tradições afro-brasileiras. Depois de Carmen Miranda, nenhuma outra cantora representara o Brasil de forma genuína, tanto do ponto de vista estético quanto do sonoro. Clara, segundo Adelzon, cumpriria esse papel. E a virada artística não só funcionaria como a elevaria ao status de estrela na EMI. O figurino foi modificado e seu repertório concentrou-se em criações assinadas por compositores do morro e da ala tradicional nordestina, como Zé Dantas e Luiz Gonzaga.

3. Clara e o samba

Ao lado de Adelzon Alves, com quem viveria um romance, Clara estouraria como intérprete e alcançaria repercussão internacional, com passagens por Cannes e Alemanha. A cantora fez três importantes discos neste período, todos batizados apenas com seu nome, mas com canções que marcariam a sua trajetória, como “Ê baiana”, “Ilu Ayê” e “Tristeza, pé no chão”.

Em 1973, foi convidada para participar do show “Poeta, moça e violão” ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho. Foi uma grande negociação de seu então empresário Benil Santos. Logo depois, sob a direção de Bibi Ferreira, Clara estrelaria o musical “Brasileiro, profissão esperança”, com o ator Paulo Gracindo – sucesso de crítica e de público que por mais tempo permaneceu em cartaz no Canecão.

Nesse momento, conheceu Paulo César Pinheiro e, apaixonada, rompeu o romance com Adelzon Alves, que a deixaria no auge com um novo trabalho, que lhe deu enorme projeção devido aos sucessos “Conto de areia”, “Menino Deus” e “Meu sapato já furou”.

Já casada com Paulo César Pinheiro, Clara iniciaria a terceira fase de sua carreira, firmando-se como intérprete da MPB em trabalhos memoráveis, nos quais desfilava sua versatilidade. Com o LP “Claridade” (1975) chegou novamente às paradas de sucesso embalada por “O mar serenou”, de Candeia, e “A deusa dos orixás”, de Romildo e Toninho Nascimento. Na Portela, passou a ser idolatrada e foi consagrada madrinha da Velha Guarda. Chegou à escola de forma sui generis pelas mãos de Carlos Imperial e Aurino Araújo. Imperial esteve preso na Ilha Grande ao lado de Natal, patrono da azul e branco, e firmou com o bicheiro amizade que perduraria fora do cárcere.

Apaixonada pela Mangueira, Clara se rendeu à Portela pelo tratamento impagável que Natal lhe dispensara. Jamais deixou a agremiação de Oswaldo Cruz e Madureira. Puxou três vezes o samba na avenida e desfilou até fevereiro de 1983, no último Carnaval de sua vida.

4. Clara, a religião, o social e a política

Religiosa, absolutamente sincrética, Clara foi criada em família católica, mas alguns de seus irmãos eram adeptos do Kardecismo. Quando chegou ao Rio, conheceu a umbanda por influência de uma amiga com quem dividia apartamento. Depois, entregou-se ao candomblé, conhecendo terreiros do Rio, de Salvador e de Recife. Seu amor pelas religiões afro começou a ser explorado pela mídia. E, sem temer, Clara fazia questão de assumir sua religiosidade dentro e fora do palco. No Rio, foi adepta do terreiro de Vovó Maria Joana, no morro da Serrinha, onde aprendeu a dançar jongo. Na Bahia, frequentou a casa de Mãe Celina. E em Recife recebeu o axé do famoso babalorixá Pai Edu.

Em todos os seus trabalhos, o tom africanista marcava presença em letras e arranjos que sempre remetiam aos elos que unem Brasil e África. Clara, sem dúvida, desempenhou importante papel na popularização e desmistificação das religiões de matriz africana, colaborando para o rompimento dos estigmas e preconceitos que, até então, prevaleciam em relação aos seus adeptos em nossa sociedade.

Nos Estados Unidos, a onda Black Power surgia, na década de 1970, por meio da soul music e dos movimentos antirracistas. Enquanto isso, no Brasil, Clara, ao lado de Martinho da Vila, João Nogueira, das Noitadas de Samba (de Jorge Coutinho e Bayer) do Teatro Opinião, de Candeia, Roberto Ribeiro, Elizeth Cardoso e Paulinho da Viola, entre outros, tratava de assumir a dianteira na luta pela valorização da música nacional, por meio do samba.

Comprou um teatro no Shopping da Gávea, batizando-o com seu nome, para dar oportunidade a artistas e músicos que enfrentavam dificuldades para se apresentar nas grandes casas de espetáculo da cidade. Ao lado de Chico Buarque e Fernando Faro participou dos antológicos shows de 1º de Maio no Riocentro. E ainda se entregou aos movimentos pela democratização do país, no início da década de 1980, subindo aos palcos da campanha das eleições diretas para os governos estaduais. Influenciada pela viagem que havia feito a Angola com Chico e Faro, em 1980, para o Projeto Kalunga, Clara esteve mais engajada politicamente do que nunca nos últimos anos de vida.

5. Clara, a constelação

Após sucesso no exterior, sobretudo no Japão, onde em 1982 fez turnê de grande sucesso, Clara Nunes decidiu internar-se para uma cirurgia de varizes na Clínica São Vicente, na Gávea. Em decorrência de choque anafilático, provocado por um componente do anestésico, teve morte cerebral, mas permaneceu viva por equipamentos durante 28 dias, até 2 de abril de 1983. O velório na quadra da Portela reuniu mais de 50 mil pessoas. Foi uma comoção nacional.

Após a morte, a cantora recebeu uma série de homenagens, incluindo a que a Portela fez em 1984 com o enredo “Contos de areia”, no qual é reverenciada no refrão. A escola sagrou-se campeã naquele Carnaval, alegria que Clara jamais experimentou em vida. Francis Hime, inspiradíssimo, compõe uma das mais belas canções em memória da intérprete, com versos singulares: “E Clara/A estrela/Rebrilha no ar/A estrela/De Clara/Não vai se apagar”. João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro criaram outra preciosidade à altura da mineira: “Um ser de luz”.

Esta última canção serve de mote ao enredo no qual, finalmente, a Portela vai reverenciar um de seus grandes nomes.

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