Cantando resistência: um tributo aos 50 anos da despedida de Victor Jara

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Torturado e fuzilado, Jara é o símbolo da importância da cultura na luta contra a ditadura no Chile

Por Fernanda Alcântara, compartilhado de site do MST




Foto: Reprodução

No palco da história, alguns artistas se destacam não apenas por seu talento, mas também por sua coragem e compromisso. Victor Jara, o renomado professor, diretor de teatro, poeta, cantor, músico e ativista político chileno, foi uma destas forças arrebatadoras para a cultura, e sua voz reverbera até hoje como uma ferramenta poderosa na resistência contra regimes opressores.

“Victor Rara foi um grande artista, músico e compositor, mas principalmente foi um militante da luta de classes, um militante da classe trabalhadora. Ele era filiado ao Partido Comunista no Chile e também atuava como professor na Faculdade de Comunicação. Ele ficou muito conhecido por suas canções de protesto, no Chile e em toda a América Latina, mas também por não ter se rendido jamais”, lembra Jade Percassi, do Coletivo de Cultura do MST.

Nasce uma estrela campesina

Yo no canto por cantar
Ni por tener buena voz
Canto porque la guitarra
Tiene sentido y razón”
(Manifesto – Victor Jara)

Nascia em 28 de setembro de 1932, no Chile, Víctor Lidio Jara Martínez, em meio a um cenário de efervescência cultural e política que mudaria sua vida. Sua infância transcorreu em meio a um país imerso em debates fervorosos sobre justiça social, direitos humanos e igualdade, temas que, mais tarde, definiriam sua carreira e seu ativismo.

Desde cedo, Jara demonstrou uma paixão ardente pela música. Crescendo em um ambiente permeado pelo som de violões e canções populares, aprendeu  a tocar violão com a mãe, de tradições camponesas, e já com um repertório de canções folclóricas que ecoavam pelas ruas de Santiago.

Nos palcos, Victor Jara encontrou sua voz e seu espaço para expressar suas convicções. Suas canções se tornaram uma trilha sonora da luta pela justiça social no Chile. Com sua voz cativante e letras poderosas, ele capturou a essência da vida e da esperança do povo chileno, usando sua música como um espelho da sociedade e uma ferramenta para inspirar mudanças.

Por volta de 1967, Jara se considerava um “cantor de protesto”, mas depois ele mudou de ideia sobre o termo. Ele achava que a indústria musical estava usando esse rótulo de maneira errada. Em vez disso, ele dizia que era um cara que trabalhava com música, não um artista, afinal, “só o povo e o tempo poderiam decidir se ele era um artista de verdade”. Em junho de 1973, em Lima (Peru), disse: “Agora, eu sou só um trabalhador. E um trabalhador com uma consciência bem clara de que sou parte da galera que está lutando para ter uma vida melhor”.

Foto: Reprodução

Na época em que tudo fervilhava, não só na cultura, mas na política e na sociedade, um grupo de artistas decidiu apoiar o socialista Salvador Allende. Victor Jara, junto com Isabel e Ángel Parra, Sergio Ortega, além dos conjuntos Quilapayún, Inti-Illimani e Aparcoa, sobem aos palanques e criam canções em defesa de Allende, que tinha como lema “Sem canções, não há revolução”.

Estes músicos, que compartilhavam das ideias políticas da Unidade Popular, ganharam o nome de “Nova Canção Chilena”. Eles tinham algo em comum: suas músicas expressavam a esperança de um futuro melhor através do socialismo. Embora o termo já tivesse sido usado como nome de um festival em 1969, agora ele passava a representar um movimento político bem claro, durante a campanha e o governo de Allende.

O resultado foram anos de transformações não apenas culturais, mas também políticas e sociais. A ascensão das massas levou à eleição de Salvador Allende e de sua coalizão de esquerda, a Unidade Popular, em 1970. Em apenas três anos, eles realizaram mudanças significativas, como a nacionalização do cobre, a principal riqueza do país que estava nas mãos dos Estados Unidos, e deram aos trabalhadores mais controle nas fábricas. Além disso, começaram a implementar uma reforma agrária incipiente. Jara atua junto ao povo nas mobilizações e na televisão. Ao lado do poeta Pablo Neruda, denuncia o avanço do fascismo e defende a paz.

Ditadura

Em 11 de setembro de 1973, o Chile foi palco de um dos eventos mais nefastos de sua história, quando o golpe militar liderado por Pinochet derrubou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende. O país mergulhou em uma ditadura brutal que durou 17 anos, marcada por perseguições políticas, violações dos direitos humanos e censura.

“Tem uma passagem, entre tantas outras, que são passagens bonitas da história da militância na vida dele. Mas infelizmente tem a passagem marcante, que é da forma como ele foi torturado e assassinado. Encontramos esta passagem no livro que foi escrito pela companheira dele, Joan Jara, em que um grupo com centenas de professores, estudantes, artistas que estavam se manifestando em apoio ao Salvador Allende e contra o golpe e foram conduzidos para esse estádio, que tinha se tornado um espaço de detenção.”, lembra Jade.

A coragem implacável e imensurável de Victor Jara teve um custo, e um dia após o golpe militar Jara foi preso, torturado e brutalmente assassinado pelas forças do regime. Jara, uma das vozes mais proeminentes da música popular da América Latina, foi torturado e morto com 44 tiros após ser detido na Universidade Técnica do Estado. Sua morte chocou o mundo e se tornou um símbolo da brutalidade da ditadura chilena.

Frente à repressão implacável do regime, a cultura se tornou uma ferramenta crucial na luta pela liberdade e justiça. Victor Jara desempenhou um papel central nesse movimento, uma vez que suas canções, muitas vezes impregnadas de mensagens políticas, se tornaram hinos de resistência para aqueles que se opunham à ditadura. Sua música, até hoje, é uma arma pacífica para inspirar e unir o povo chileno, mantendo viva a chama da esperança.

Hoje em dia, relembra é uma maneira de manter vivas as esperanças e a memória dos crimes da ditadura e da resistência. Até hoje, muito da impunidade de seu assassinato perdura, embora no campo político e legal tenha havido avanços para responsabilizar os torturadores e líderes do regime militar que causaram tanto sofrimento no Chile.

Em 2018, a justiça chilena condenou sete ex-militares como autores dos crimes de sequestro e homicídio qualificado de Víctor Jara e Littré Carvajal, que era diretor das prisões na época do governo Allende. Em 2021, as penas foram aumentadas, com seis deles recebendo sentenças de 25 anos de prisão e um deles recebendo 5 anos. Alguns dos réus tentaram recorrer à Corte Suprema, mas em agosto deste ano, tiveram seus pedidos de revisão negados. Um dos ex-militares se suicidou antes de ser preso.

Em julho deste ano, nos Estados Unidos, um juiz da Flórida retirou a cidadania norte-americana do ex-tenente do Exército Pedro Pablo Barrientos Nuñez, que vive no país desde 1990. Ele é acusado de ser o autor material do assassinato de Víctor Jara. O juiz afirmou que Barrientos mentiu em seu processo de imigração, negando qualquer envolvimento em genocídio ou homicídio, o que tornou sua cidadania ilegal.

Oficiais da reserva do Exército, como Raúl Jofré, Edwin Dimter, Nelson Haase, Ernesto Bethke, Juan Jara e Hernán Chacón, junto com Rolando Melo, também foram condenados a penas que variam de 8 a 25 anos de prisão. A Suprema Corte reconheceu o assassinato e sequestro tanto de Jara quanto de Quiroga, que estiveram detidos no Estádio Chile, em Santiago, nas primeiras fases do regime de Pinochet.

O Legado Duradouro

Jade Percassi ressalta como esta obra figura, junto com outras outros nomes importantes da música de protesto, um marco para todos aqueles que lutam pela vida e por justiça. “Jara teve um papel fundamental para manter as ideias da resistência quando entre trabalhadores e trabalhadoras do Brasil e da América Latina, também por conta da sua existência, desse papel que ele cumpriu, fazendo parte desse desse coletivo mais amplo de artistas durante esse período das ditaduras brutas aqui na América Latina”.

Apesar de sua morte prematura, Victor Jara deixou um legado duradouro. Suas músicas continuam a inspirar pessoas em todo o mundo a lutar por justiça e liberdade. Além disso, sua história destaca a importância da cultura como um meio poderoso de resistência contra regimes autoritários. 

Sua obra continua atual, sensível e é importante, como diz aquele, aquele poema: Não cantamos por cantar; cantamos porque os nossos mortos querem que nós cantemos, que a gente não esqueça, que a gente continue a luta pela qual eles deram a vida por isso”

Por isso, Victor Jara é lembrado não apenas como o talentoso músico que foi, mas também como um herói da resistência contra a ditadura no Chile. Sua coragem e dedicação à causa da justiça e da igualdade demonstram o papel fundamental que a cultura desempenha na luta contra a opressão. 

Neste sentido de lembrança, a sexta (30) de setembro será realizada no Galpão o evento Mil Guitarras para Víctor Jara, a sexta edição brasileira de um evento que visa manter vivo o legado do trovador, a partir do entendimento de que cantar e dançar as canções de Víctor e de seu universo musical também é tornar vivo o canto de resistência latinoamericano.

Afinal, seu legado recorda que, mesmo nos momentos mais sombrios, a música e a arte têm o poder de iluminar o caminho para um mundo melhor, como lembra sua última canção inacabada, feita já no Estádio Chile (atual Estádio Víctor Jara), após ser preso:

“[…] Espanto como o que vivo/como o que morro, espanto./ De ver-me entre tantos e tantos/momentos do infinito/ em que o silêncio e o grito/ são as metas deste canto./O que vejo nunca vi,/o que tenho sentido e o que sinto/fará brotar o momento…”

*Editado por Gustavo Marinho

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