Como a tragédia humanitária no Amazonas atinge personagens anônimos que são muito mais que estatísticas . Na imagem acima está o empresário Francisco das Chagas Netto com a avó Maria de Nazareth, 85 anos, sobrevivente do vírus e da falta de oxigênio em Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Levou uma semana até que os filhos criassem coragem para falar com o pai. Como encontrar as melhores palavras para dar a pior das notícias? Aos 62 anos, Ozimar Gualberto Auzier, se recupera, em casa, da Covid-19. Podiam estar todos celebrando a vida, mas foi o oposto. Raimunda esteve bem perto de ser transferida de Manaus para Goiânia, em um dos voos da salvação que transportou pacientes para outros estados durante a tragédia humanitária provocada pela falta de oxigênio no Amazonas. Ela chegou a sair do hospital com saturação em 95. Poucos minutos antes de chegar ao aeroporto, o nível de saturação começou a despencar e ela foi levada às pressas de volta ao hospital.
Neta de Ozimar e Raimunda, a professora Letícia Auzier, 26, acredita que a história da avó poderia ter sido bem diferente, se o Estado e município tivessem se preparado melhor para a segunda onda da Covid. “Se ela tivesse sido atendida da forma devida… Ela chegou a voltar da triagem do Platão Araújo (no início da doença). Tanto eu, quanto minha madrasta – que a acompanhamos no hospital – vimos que ela foi negligenciada”, desabafa.
A dor é enorme e Letícia conta que sequer pode viver o luto pela avó. A hora é de focar as atenções na melhoria do avô Ozimar, que ainda respira com dificuldades. “Ainda não parece real. Acordo com a sensação de que ela vai me chamar para tomar café. Não tem como descrever o que estou sentindo agora”, desabafa Letícia.
Raimunda Alexandre Auzier é uma das 8.266 vítimas da pandemia da Covid-19 no Amazonas. A primeira morte pelo vírus foi registrada em 25 de março de 2020. Desde o início de 2021, o estado enfrenta uma crise sanitária sem precedentes com o aumento dos casos por causa de uma nova variante, falta de leitos e oxigênio medicinal nas UTIs dos hospitais públicos e privados.
Raimunda e Ozimar Auzier (Foto: Arquivo pessoal)
Raimunda não foi a primeira pessoa da família Auzier a ser vitimada pela Covid-19. Ela e o marido já haviam perdido o filho, Ozias Alexandre Auzier, durante a primeira onda da pandemia. Em 28 de abril de 2020, Ozias morreu aos 39 anos no Hospital Platão Araújo, o mesmo onde a mãe morreu.
À época, o ex-prefeito Arthur Neto (PSDB) ordenou que se abrissem valas comuns no cemitério Nossa Senhora Aparecida, na zona oeste, para sepultar as vítimas da doença. Raimundo não queria que o filho fosse enterrado daquela maneira. A família conseguiu realizar o sepultamento no cemitério Recanto da Paz, no km 13 da Rodovia Manoel Urbano, em Iranduba, a 35 quilômetros de Manaus.
Letícia, que cuidou do enterro do tio e, neste ano, também da avó, conta que a família decidiu sepultar Raimunda no mesmo cemitério. Mas em meio às milhares de mortes, muito acima do normal, as terras dos cemitérios são vendidas aleatoriamente. “Quais eram as chances de eles conseguirem colocar a mãe perto do filho? Só soube que eles ficaram procurando o túmulo do meu tio e, no final, como um milagre de Deus, ela foi enterrada em uma sepultura ao lado do filho”, conta.
A luta pelo oxigênio que salvou duas vidas
Nazareth Araújo com sua filha Jackeline Araújo e o neto Francisco Chagas Neto
(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Se na pandemia há muito espaço para a dor, existe também para a alegria. Mas no Amazonas os momentos felizes só têm surgido depois de longas batalhas. Aos 85 anos, Maria de Nazareth Araújo sobreviveu à tragédia humanitária da falta de oxigênio nos hospitais. Não só ela, mas também a filha dela, Jacqueline Araújo Cruz, de 48, portadora de necessidades especiais. O neto de Maria, o empresário Francisco da Chagas Netto, de 41 anos, pode, enfim, respirar aliviado.
No dia 14 de janeiro , a Amazônia Real começou a acompanhar a luta do empresário para conseguir salvar as duas. Ele e a família montaram uma operação de guerra, que teve início em 27 de dezembro e só terminou em 20 de janeiro, quando os exames não encontraram mais a presença do novo coronavírus nas duas.
Netto conheceu na prática a dura realidade de uma rede hospitalar em colapso, quando tentou atendimento para a tia e a avó, primeiro na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Campos Sales, na zona oeste de Manaus. Não havia nenhuma vaga. De lá, a família se deslocou para o Pronto-Socorro 28 de agosto, o maior hospital da capital, que fica na zona centro-sul. Não havia mais lugar para ninguém, nem ali e nenhum outro hospital de Manaus, fosse na rede pública ou privada.
“O hospital é um lugar onde podem salvar vidas. Quando eles fecham as portas pra ti… Ali percebemos que estávamos desamparados pelo poder público”, recorda Netto. Mas nunca houve tempo para tristeza. O primeiro passo da família foi encontrar um médico que pudesse atender em domicílio. “Corremos atrás de um médico, de um fisioterapeuta, porque uma coisa vai levando a outra. Até então, naquele momento, a gente não sabia o que ia fazer.”
Com a orientação médica, a família Chagas montou uma pequena estrutura hospitalar particular, com cilindros de oxigênio e fisioterapeuta para que mãe e filha pudessem lutar pela vida. “Conseguir montar uma estrutura em casa, para dois pacientes, isso é muito difícil em todos os aspectos, do financeiro à logística. Foi uma batalha duríssima”, revela.
Quando o oxigênio começou a rarear, o empresário teve de enfrentar, junto de centenas de outras pessoas, a disputa por cilindros na cidade. Ele teve de sair de casa às 8 horas, e só retornou na madrugada do dia seguinte, às 2 horas. O esforço deles foi recompensado. “O primeiro sentimento que tenho, tanto meu, quanto da minha família, é de gratidão a Deus, porque a gente sabe que sem Ele, nem todo nosso esforço teria resolvido. Muita gente passou por essa situação, fez o que pode e, infelizmente, perdeu essa batalha”, lamenta.
A família Chagas desembolsou cerca de R$ 20 mil com o tratamento contra a Covid-19. “Agora elas estão se recuperando com a fisioterapia pulmonar, mas elas estão bem. Já conseguem levantar, tomar café e fazer as coisas normalmente”, comemora o empresário, que faz um alerta. “Depois de tudo que passamos viemos a entender por que tem esse número de óbitos elevados. Se não tratar no começo, se não tiver acompanhamento e todas as coisas recomendadas pelo médico na hora certa, vai morrer e não tem conversa”, diz Netto.
A solidariedade que se encontra em meio à dor
Doação de oxigênio por funcionários do Tribunal de Justiça do Amazonas
(Foto: Raphael Alves/TJAM)
Aos 87 anos, Cecília Magalhães é presença cativa na missa de domingo na Igreja de São João Batista, na área missionária de São Lucas, na Cidade Nova II, na zona norte de Manaus. Antes da pandemia, a celebração começava às 7 horas. Uma hora antes, sempre, Cecília já estava lá, com a sua inseparável bolsa, usada para guardar o lugar da amiga.
Mas desde o dia 21 de janeiro, Cecília está internada no Pronto-Socorro João Lúcio, com pelo menos 90% do pulmão comprometido pela doença. Para o neto, o engenheiro florestal Leonilson Magalhães, de 38 anos, cada dia é um novo milagre. “Fundamental nessas horas é ter a fé, a esperança, esse amor de Deus. É isso que está fortalecendo a minha mãe, meu pai, minha esposa, a mim, meu irmão, e toda a família. Essa fé irá curar a nossa avó. E estamos pedindo não só por ela, mas por todas as pessoas que estão passando por essa situação no momento. Cremos que a cura virá e que ela vai vencer essa batalha”, diz Leonilson.
Após o primeiro dia de internação, Leonilson conta que a família recebeu uma vídeo-chamada para poder falar com Cecília. Depois disso vieram três longos dias de silêncio. “Essa questão da falta de informação médica é muito angustiante. É um dos fatores mais difíceis. E não é só você nesta angústia. Outras famílias também estão ali”, conta.
Na área externa do hospital, em dias de chuva ou de sol, os parentes seguem à espera de alguma informação. Dentro da unidade médica, o clima é de guerra. “É muita gente para atender o tempo todo. Infelizmente não temos condições de passar sempre informações para os familiares”, justifica-se um médico do Pronto-Socorro e Hospital João Lúcio, na zona leste de Manaus.
No “plantão” na frente do João Lúcio, Leonilson e a mulher Danniely Souza se revezam em busca de notícias da avó Cecília. “Toda hora chega uma ambulância, toda hora sai uma outra. É alto o número de óbitos, mas no meio de tudo isso, ainda há o milagre da vida com muitas altas que presenciamos”, conta. O alívio nesse ambiente vem de pessoas que compartilham das mesmas dores. “Elas acabam nos orientando dizendo o que fazer, como proceder e dando uma palavra amiga. Também existe o apoio de pessoas solidárias que trazem uma água, um café, uma sopa”, conta Leonilson.
Unidas pela sobrevivência: mãos de Nazareth Araújo e sua filha Jackeline Araújo
(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)