Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, publicado em Jornal GGN –
Um clube exclusivo formado por capitães da indústria, empresários de finanças e donos de empresas de segurança transforma a exploração e a desigualdade na sua literalidade: explorar significa conjugar de inúmeras maneiras e sentidos o verbo comer.
O filme cearense “O Clube dos Canibais” (2018), de Guto Parente, facilmente dialoga com o celebrado “Bacurau” – são produções nordestinas que, além de incursionarem no cinema de gênero, refletem o atual cenário de crise política e social brasileira. Mas diferem-se pela utilização da fórmula do maniqueísmo, essencial no gênero fílmico gore e exploitation. Se em Bacurau a luta de classes cede lugar a figura do político como inimigo de uma comunidade e que facilita as coisas para o necroturismo, em “O Clube dos Canibais” temos a luta de classes no próprio cotidiano de trabalho e sobrevivência dos subalternos – o dia a dia de dominação e exploração pode terminar no pior: o explorado servir de prato do dia na mesa dos ricos. Um clube exclusivo formado por capitães da indústria, empresários de finanças e donos de empresas de segurança transforma a exploração e a desigualdade na sua literalidade: explorar significa conjugar de inúmeras maneiras e sentidos o verbo comer.
Há um forte traço de “fixação oral” (relativa à fase oral freudiana, o primeiro estágio do desenvolvimento psicossexual humano) no psiquismo brasileiro. Há uma variedade de expressões que demonstram essa fixação como as misóginas “comer a mulher” ou “mulher gostosa” ou as políticas como “mamar nas tetas do Estado” ou definir seja um ato corrupto ou um negócio fácil como “mamata”, “batata”, “isso aí é mamão com açúcar”, “melzinho na chupeta” etc. Entre inúmeras outras expressões que demonstram de que há algo de não resolvido ou regressivo nesse estágio psicossexual no brasileiro.
Relações de poder e desigualdade parecem também impregnadas por essa fixação psíquica: explorar ou se aproveitar do outro como fosse “comê-lo”, num claro complexo simbólico formado pela mescla entre oralidade, sexualidade regressiva (sádica) e política – a questão não é busca de algum consenso, mas como “se dar bem” no sentido de busca de uma satisfação oral.
Claro que essa, por assim dizer, “oralidade” cultural já foi elaborada de uma forma mais progressiva como no movimento artístico antropofágico de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral no qual a antropofagia cultural (pegar e digerir o que vem do exterior) é impulso criativo.
O filme cearense O Clube dos Canibais (2018) vai direto ao ponto regressivo das variadas formas de conjugar o verbo “comer”. Tema que somente poderia ser tratado através do gênero “gore”: como a elite rica converte as relações de exploração na sua literalidade – de fato, os mais ricos literalmente comem os pobres.
Esse é o oitavo longa de Guto Parente, ativo diretor que cultiva o cinema de gênero – O Estranho Caso de Ezequiel (2016), A Misteriosa Morte da Pérola (2014), Doce Amianto (2013).
O mau gosto e a vulgaridade da elite são sintetizados no próprio local onde ocorrem grande parte das ações: uma imensa casa em frente ao mar, isolada do exterior por grandes áreas envidraçadas e que não funciona sem ar condicionado. A alegoria de uma elite predadora, sem a mínima noção de sustentabilidade – além de comer os pobres, devora os recursos ambientais.
Apesar de Guto Parente privilegiar uma narrativa de gênero, o filme não cai no maniqueísmo fácil ou no lugar comum midiático da depreciação da política – a exploração perpetrada por políticos que enriqueceram através da corrupção que explora o povo brasileiro. Não, aqui a corrupção e a exploração estão entranhadas na elite empresarial, financeira e de negócios. Ou seja, nas próprias relações sociais assimétricas sobre as quais funciona o capitalismo.
O filme até figura um político corrupto, mas ele é meramente uma peça da engrenagem para facilitar os negócios de uma classe dominante empresarial.
Por isso, O Clube dos Canibais facilmente dialoga com o aclamado Bacurau. Além de ambos serem produções nordestinas que refletem o atual cenário político nacional e internacional de guinada à extrema-direita (e também incursões pelo cinema de gênero), diferem-se pela utilização da fórmula maniqueísta, essencial no gênero gore e exploitation.
Se em Bacurau a luta de classes cede lugar a figura do político, o prefeito corrupto Tony Jr., inimigo da comunidade e que facilita as coisas para o necroturismo dos mercenários norte-americanos, em O Clube dos Canibais o conflito está no próprio cotidiano de trabalho e sobrevivência dos subalternos – o dia a dia é de dominação e exploração e que pode terminar no pior: o explorado servir de prato do dia na mesa dos ricos.
Aqui o maniqueísmo de gênero ganha novas matizes: exploração e canibalismo ao lado dos pobres que são seduzidos pelo poder, dinheiro e sexo dos ricos.
O Filme
A abertura do filme revisita a clássica cena de pornochanchada: um caseiro bem viril limpa a piscina enquanto a patroa, em pose lasciva, toma um banho de sol de biquíni enquanto sorve um drink. Previsível troca de olhares antevendo o que está por vir. O marido avisa o caseiro que terá de viajar por uns dias e ela, mais do que depressa, convoca o subalterno para sua cama. Para o infeliz caseiro terminar com uma machadada na cabeça antes do ápice da transa, desferida pelo patrão depois que ele ficou observando o ato numa forma de prazer voyeurista.
Corta depois para o casal desfrutando um jantar romântico com um fricassê da carne do pobre caseiro.
Otávio (Tavinho Teixeira) e Gilda (Ana Luiza Rios) vivem no luxo indolente em sua casa de praia envidraçada. Ele, um empresário proprietário de uma firma de segurança privada. E ela, uma dondoca descolada que partilha com o marido o gosto pelo canibalismo… de empregados.
Seu único aborrecimento é ter que partilhar o seu marido com reuniões secretas noturnas para as quais Otávio é seguidas vezes convocado. Um clube exclusivo formado por capitães da indústria e da riqueza financeira e local. Além de discutirem negócios, o ápice é assistirem a vários atos sexuais de modelos negros contratados. Para depois, os infelizes copuladores terminarem mortos e sua carne servida nos pratos de um requintado jantar.
Nas reuniões, discute-se a manutenção da ordem, o respeito à família e a moralidade dos cidadãos de bem. E a necessidade de combater os “inimigos” que querem perturbar aquele delicioso status quo.
Borges (Pedro Domingues) é o político local que azeita a máquina do Estado para favorecer os negócios (comerciais e privados) daquela elite abastada. Ele também preside aquele clube bizarro.
O problema começa em uma das inúmeras festas promovidas pelo clube: sem querer, Gilda flagra Borges (um colérico defensor da moral, tradição e família) num ato sexual homo-afetivo com um caseiro da sua mansão.
A partir dessa descoberta involuntária, a paranoia começa a dominar o casal Otávio-Gilda: um membro do clube recentemente sofrera um “terrível acidente”. Otávio teme que essa descoberta de sua esposa também poderá mata-los em outro “acidente”.
O casal briga, se desentende, mas não larga seu hábito de explorar e comer seus empregados. Recorrem sempre a uma agência de empregos para escolher seu próximo prato, digo, empregado! Exigem que tirem fotos dos candidatos seminus, para apreciarem e escolher melhor a “matéria-prima”.
Os temas de O Clube dos Canibais e Bacurau convergem: são narrativas sobre membros da elite que matam por puro prazer, seja por esporte ou por, digamos, requinte gastronômico – não basta apenas explorar a mais-valia, é necessário também devorar o explorado!