Por Aydano André Motta, em Projeto Colabora –
Acidentes na Sapucaí expõem falhas na estrutura, mazelas do país e afetam a imagem do Rio no exterior
O show tem que continuar – e o clichê transformou-se em muleta para o espetáculo melancólico, encenado nos dois dias dos desfiles das grandes escolas de samba cariocas. O enredo de absurda imprudência cruzou a avenida, na insensatez de sustentar cortejos sem clima para qualquer alegria. No fim, a fantasia de surreal alienação e a realidade dos 32 feridos em plena pista – alguns em estado grave – consolidam a certeza: o Carnaval 2017 passará à História como aquele que deu errado.
No bojo, as decisões de manter o desfile a qualquer custo falam muito – tragicamente – sobre os brasileiros como sociedade. O egoísmo que se firma a cada dia como nossa mazela dominante evoluiu soberano na Sapucaí. O objetivo principal de rigorosamente todos ali foi levar o show até o fim, a qualquer custo. Deu numa odisseia onde ninguém estava seguro – diante dos olhos do mundo inteiro.
As ocorrências da Sapucaí são frutos da mesma árvore bárbara que manteve o Flamengo e Botafogo do dia 12 de fevereiro, mesmo com o torcedor assassinado com um espeto de churrasco, na porta do estádio. Ou dos crimes banais de todo dia, que muitas vezes acontecem diante de testemunhas insensíveis, no reino do “tenho nada com isso”, “não é problema meu”. Segue o baile, o outro nome do Brasil.
Assim, o Carnaval celebrado como o tal “maior espetáculo da Terra” (porque a coleção de clichês não tem fim) exibiu-se ao vivo pela TV para mais de uma centena de países como festa radicalmente brasileira, no pior sentido. Os artistas incríveis das escolas foram compulsoriamente travestidos em violinistas do Titanic – os músicos que, no filme famoso, seguem tocando, em meio ao desespero pelo naufrágio do navio.
A coleção de acidentes com as alegorias e as atitudes tomadas a partir deles são, sim, responsabilidade de muita gente. A Liga das Escolas de Samba, entidade privada que ganhou a gestão do espetáculo de presente, dado nos anos 1990 pelo então prefeito Cesar Maia – no tempo em que privatização parecia o elixir de todos os males –, mostrou não se ocupar de prevenção e plano de contingência. Seus dirigentes e parceiros (entre eles, a TV Globo) não cogitaram em nenhum momento a paralisação do paticumbum.
Não que fosse tarefa simples pôr em prática tal alternativa. Difícil avaliar como a multidão de 70 mil pessoas que lotava a Passarela do Samba reagiria à decisão. Mas um evento que envolve tanta gente precisa de gerenciamento mais firme e planejado. No momento do primeiro (e mais grave) acidente, com o carro do Paraíso do Tuiuti, no início da maratona, o que se viu foram os cartolas da folia abrindo os braços uns para os outros e correndo sem rumo ao setor 1, onde o carro alegórico bateu violentamente duas vezes, num boliche macabro.
A alegoria foi retirada no ritmo dos gritos de diversos seguranças, para esvaziar a pista e fazer o evento ir em frente. Poucas horas mais tarde, a presidenta do Salgueiro, Regina Celi, paralisou a festa – a Vila Isabel, escola anterior, deixara óleo na pista, o que atrapalharia a evolução dos componentes da vermelho e branco tijucana. Como bem observou Flávia Oliveira na Globonews, isso sim foi motivo para interromper o bafafá.
No dia seguinte, a parte superior do carro sobre Nova Orleans, da Unidos da Tijuca, desabou também no setor 1, mas nem a cena de desespero dos componentes e da plateia conseguiu tourear a obsessão dos dirigentes. Os foliões das alas tiveram de se espremer para passar ao lado da alegoria semidestruída e, em seguida, cantar e dançar, até a Apoteose.
A cena do carro cruzando a Passarela em escombros, com bombeiros escoltando pessoas encolhidas nos cantos, aterrorizadas, as fantasias pela metade, ficará na parede da memória para sempre. Assim como a declaração do presidente da escola, Fernando Horta, minimizando o ocorrido e culpando os responsáveis pelo socorro aos feridos pelos danos à alegoria. Novamente, o pragmatismo beira o inacreditável.
Como se diz hoje em dia, aconteceu de um tudo nos dois dias da principal festa do país, sob a omissão voluntária – dolosa, na verdade – do prefeito da capital do samba. O bispo licenciado da Igreja Universal Marcelo Crivella sentiu-se desobrigado de acompanhar ao vivo aquela concentração de cariocas, turistas, equipamentos pesados, material inflamável, bebida alcoólica em quantidades industriais etc. Preferiu passear – esteve no hospital emoldurando os feridos da Sapucaí em fotos de campanha e postou vídeo pregando que “a gente pode não saber sambar, mas sabe trabalhar”.
Não precisa ser do Carnaval. A cidade e o mundo estão carecas de saber que o negócio do bispo é Jesus, não Oxalá. Ele se sente devedor do eleitorado evangélico, ainda assim foi democraticamente eleito, jogo jogado. Mas podia se esforçar para estar no lugar certo – no evento que, de novo e de novo, atrai os olhos de todo o planeta para o Rio. Como autoridade suprema da cidade, poderia ter dado as ordens corretas, para o atendimento aos feridos, apuração das responsabilidades, tratamento com o público. Sairia fortalecido politicamente. Mas não – Crivella preferiu a política pequenina, do beija-mão após o leite derramado.
E olha que há muito por apurar. O homem que se identificou como motorista do carro da Tuiuti (não se exige, por óbvio, qualquer documentação prévia dos condutores das alegorias) revelou, em depoimento à polícia, ter sido sua primeira vez na condução de uma alegoria. Seus filhos contaram ainda que ele foi agredido por componentes da escola, depois do acidente.
Um carro alegórico é uma estrutura muito peculiar. Espetado sobre chassis de caminhões ou carretas, recebe decoração imensa, pesada e sofisticada, além de carregar pequenas multidões de viventes. O motorista tem apenas um vão para divisar o caminho – e, se a escola e o desfile estiverem muito organizados, conta com o auxílio de um condutor externo. Não há retrovisor, câmeras ou qualquer outro equipamento que a tecnologia oferece.
Com a crise, as escolas dobraram a aposta na reutilização dos equipamentos, no caminho da exaustão. Paradoxalmente, dois anos atrás, a Liga convidou as integrantes do desfile a aumentar o tamanho das alegorias, ao convencer o escritório de Oscar Niemeyer – responsável por autorizar obras no Sambódromo – a derrubar a torre usada por cinegrafistas, no fim da avenida. O equipamento servia como limitador para o tamanho dos carros e tornou célebres trapalhadas de carnavalescos, que calculavam mal a altura e terminavam com suas criações entaladas naquele ponto.
Na lógica visceral da folia, valoriza-se carros imensos, numa corrida burra do quanto maior, melhor. Agora, ali se constrói a cada ano uma estrutura provisória, bem acima do modelo anterior. As alegorias subiram irracionalmente de tamanho. E a preocupação está no alto, na decoração e nos componentes. O que sustenta a festa, pouco importa. Deu no que deu.
E o mundo das escolas fecha seu capítulo em 2017 com a credibilidade no chão. Precisará repensar sua logística, suas apostas na engenharia, seus profissionais e processos. Líder num setor crescentemente pressionado pela crise e pelo Carnaval de rua (hoje a parte próspera da festa carioca), a Liga das Escolas tem de se reinventar. Para não deixar o samba morrer.