Vida e obra de uma mulher preta que fez da literatura seu caminho de resistência e liberdade. Cinco livros de Carolina Maria de Jesus e muito mais
Compartilhado de CONTEE
Carolina Maria de Jesus transformou o seu “Quarto de Despejo” em samba, prosa e poesia, em liberdade. Chegou a dizer certa vez: “quem não tem amigo, mas tem um livro, tem uma estrada”.
Ao longo dos seus 63 anos (1914-1977), Carolina preferiu se valer da literatura para desaguar suas dores e denunciar as desigualdades sociais, as injustiças estruturais. Ela saciou a fome com palavras: escreveu livros, poesias e deixou um álbum musical belíssimo. A escrita visceral de Carolina transcende, atravessa gerações.
Mulher preta, pobre, catadora de papel, mãe solo de 3 filhos, que viveu dias tenebrosos na favela Canindé, em São Paulo. Carolina com sua família experimentou intensas precariedades, mas nunca se deixou abater. Seguiu escrevendo o seu cotidiano, registrando os acontecimentos ao seu redor e lutando pela vida de maneira ardente, sem abandonar o seu sonho de escritora, mesmo em meio a tanto caos e miserabilidade.
Mulher de espírito elevado que fez das folhas em branco a sua arma mais poderosa. Ela mergulhou nas profundezas dos desvalidos, iludidos pelos políticos populistas, que só aparecem nos bairros periféricos de 4 em 4 anos. Revelou com sensibilidade a rotina difícil daqueles que se deparam com a dispensa vazia ao amanhecer, que muitas vezes se sustentam com farinha e água para seguir em frente.
“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.
Carolina contou a sua história e de tantos espalhados pelo mundo e Brasil afora. A história de homens e mulheres à margem da Saúde, Educação, de todos os direitos fundamentais, imersos nas mazelas sociais. A par de tudo isso, acolher o sol de cada dia é o canto de esperança. Assim Maria de Jesus fez brilhar a sua estrela, “caminhando e cantando e seguindo a canção”.
Em tudo que produziu se entregou de corpo e alma. Tratou de temas universais desnudando o seu lugar. Penso que Carolina andou dialogando com o poeta Manuel de Barros. Ele se alegrava ao declarar: “o meu quintal é maior do que o mundo”.
Não tenho dúvidas que o quintal da extraordinária Carolina Maria de Jesus é maior do que o mundo. O Jornalista Audálio Dantas, que viabilizou a publicação da sua obra-prima em 1960 – O Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, foi o primeiro a constatar.
A edição número 1 da obra consagrada teve uma tiragem de dez mil exemplares, só durante a noite de autógrafos foram vendidos 600 livros. Com o sucesso das vendas, Carolina deixou a favela e, na sequência, adquiriu uma casa no Alto de Santana.
Na ocasião, a Academia Paulista de Letras e a Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo prestaram-lhe homenagens. Em 1961, a autora viajou para a Argentina onde recebeu a “Orden Caballero Del Tornillo”. Nesse mesmo ano, Carolina também lançou o seu álbum musical de sambas e marchinhas. Nos anos seguintes, Carolina publicou Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada (1961); Pedaços da Fome (1963) e Provérbios” (1965).
O livro Quarto de Despejo se tornou um best seller, mas Carolina não se beneficiou da grande repercussão e nem colheu os fartos frutos. Ela acabou tendo que voltar à atividade de catar papel. Em 1969, mudou-se com os filhos para um sítio no bairro de Parelheiros, em São Paulo, período em que ficou praticamente esquecida pelo mercado editorial. Carolina Maria de Jesus se encantou no dia 13 de fevereiro de 1977.
A escritora não teve o reconhecimento merecido em vida. No entanto, se despediu da terra sabendo que estava deixando um legado impactante.
“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.
Quiseram o apagamento dessa mulher formidável. Marginalizaram as suas criações, afirmando que não passava de subliteratura. Quiseram a todo custo silenciar a sua voz. Felizmente não conseguiram.
Há pensamentos de Carolina espalhados por todo canto. Entre os dias 15 e 17 de outubro deste ano, estiveram em Nova York e Washington DC, em um ciclo de debates intitulado “Carolina – A Escritora do Brasil”. Uma celebração dos 110 anos de nascimento da autora. Na última terça, 5 de novembro, na Câmara dos Deputados, foi aprovado o projeto de urgência que inclui o nome da multiartista no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Carolina defendeu e, por meio do seu legado, segue defendendo um mundo melhor, antirracista, despido de preconceitos, um mundo mais justo. O fim representa o começo, o infinito, a eternidade. A sua trajetória confirma que “O Jogo do Contente” descrito no livro Pollyanna funciona. É possível encontrar rastros de beleza nos infortúnios. Carolina encontrou um rio literário, encontrou personagens, encontrou forças, encontrou o sentido do seu existir. Carolina Maria de Jesus vive e resiste!
“Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz”.
Diários imortalizados. Palavra viva, música viva de Carolina! Liberdade na terra e no céu…
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino (Contee) tem o prazer de apresentar um pouco mais do quintal de Carolina Maria de Jesus. Vamos entrar? O fim de semana será comovente com muito samba, prosa e poesia…
LEIA OS LIVROS
1 – O QUARTO DE DESPEJO: DÁRIO DE UMA FAVELADA
Sua obra-prima é um manifesto contra o país desigual, massacrado pela fome miséria e preconceitos. Mas é também um manifesto de resistência e superação. A mulher pobre, negra, catadora de papel, leitora voraz, que só estudou até o segundo ano fundamental, conseguiu como ninguém retratar a realidade amarga dos favelados na década de 1950. Quarto de Despejo é um relato autobiográfico, escrito com uma linguagem simples, mas profunda, que reflete a dureza da vida cotidiana, a luta pela sobrevivência e a desigualdade social enfrentada por Carolina e seus filhos. Uma história que retrata a história de tantos brasileiros e brasileiras. O livro foi traduzido para 13 idiomas e é conhecido por leitores de 40 países. A obra já atingiu a marca de 1 milhão de exemplares vendidos e continua bem atual, impactando o mundo, sendo referência para estudos culturais e sociais.
2 – O ESCRAVO
Em O Escravo, romance inédito escrito na década de 1950, mas só publicado em 2023, Carolina Maria de Jesus apresenta uma história de amor e desilusão entre dois jovens de classes sociais distintas. O romance explora o relacionamento de Rosa e Renato, primos apaixonados, mas separados pela pressão da família abastada do rapaz. Nessa obra, ela mistura sua verve ficcional com uma crítica à sociedade, desafiando o olhar colonial racista que tenta reduzir sua figura. Como explica Denise Carrascosa em seu prefácio, Carolina subverte a língua euro-ocidental, criando uma literatura que ecoa vozes afro-ancestrais e, ao mesmo tempo, aponta para o afro futuro.
3 – CASA DE ALVENARIA – VOLUME 1 – OSASCO
O primeiro volume dos diários de Carolina Maria de Jesus, edição integral e ampliada, registra os meses em que a escritora viveu em Osasco (SP), em 1960, após deixar a favela do Canindé. Neste diário, acompanhamos a repercussão de Quarto de Despejo, as viagens de divulgação, os contatos com a imprensa e a política, além do desenvolvimento do projeto literário de Carolina e seu desejo de ser reconhecida como escritora. As reflexões sobre sua sociedade, permeadas pelas contradições de seu tempo, continuam atuais e provocativas. Este volume revela uma autora única, que desafiou as barreiras do racismo e da desigualdade, e que permanece como uma das maiores escritoras da literatura brasileira.
4- CASA DE ALVENARIA – VOLUME 2 -SANTANA
O segundo volume de Casa de Alvenaria oferece uma visão fundamental sobre a experiência da mulher negra nas periferias urbanas e seu papel na literatura brasileira, destacando as dificuldades de Carolina Maria de Jesus em ser ouvida em uma sociedade marcada pela desigualdade. A obra se torna um ponto de reflexão sobre a literatura como resistência cultural, especialmente no contexto do movimento literário negro e das mulheres negras. Para estudiosos da cultura afro-brasileira, este volume oferece uma análise das tensões sociais no Brasil e provoca uma reavaliação do lugar da literatura negra no cânone literário nacional.
5 – DIÁRIO DE BITITA
Diário de Bitita é uma obra de Carolina Maria de Jesus que narra a realidade de uma família negra no Brasil nas primeiras décadas do século XX, sob a perspectiva de uma menina chamada Bitita. A partir de sua visão, o livro expõe os desafios da sobrevivência, a busca por trabalho e a luta pela dignidade em um contexto de pobreza e discriminação racial. Bitita documenta seu cotidiano repleto de dificuldades, tentando entender e reagir às injustiças sociais e ao preconceito. Publicado postumamente em 1982, o livro se soma à importância de Quarto de Despejo, destacando questões sociais e raciais que marcaram e marcam a vida das pessoas negras no Brasil.
FRASES PARA REFLETIR
1- “Quem inventou a fome são os que comem.” …
2- “O negro só é livre quando morre.” …
3- “Quando o homem decidir reformar a sua consciência, o mundo tomará outro roteiro.” …
4- “Atualmente somos escravos do custo de vida.” …
5- “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer.”
6 – “Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário”.
8 – “Somos escravos de tudo que desejamos possuir. Ninguém é livre neste mundo”.
ESCUTE AS CANÇÕES DE CAROLINA
Além de escritora, Carolina Maria de Jesus também foi cantora e compositora. Em 1961, ela lançou o álbum Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus Cantando suas Composições, pela gravadora RCA-Victor. O disco, lançado no auge do sucesso de seu livro Quarto de Despejo, reúne 12 músicas. No álbum, Carolina compartilha sua paixão pelo Carnaval, com marchinhas alegres e sambas que retratam a vida cotidiana na favela. Nas 12 faixas, ela aborda temas como a miséria, o amor e faz críticas bem-humoradas a figuras da comunidade. Tal como em Quarto de Despejo, suas canções foram escritas em cadernos que ela encontrava no lixo, mostrando a criatividade e a força de uma mulher que, mesmo diante das dificuldades, expressava sua realidade com poesia e irreverência.
FIQUE LIGADO!
Neste mês da Consciência Negra, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) vai destacar a literatura negra para reforçar a obrigatoriedade de se inserir no currículo escolar o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, prevista pela lei 10.639/03.
A lei já tem 21 anos, mas ainda é pouco implementada. Segundo a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, apenas 17% das escolas aplicam a norma. É preciso avançar muito. Inclusive, a redação do ENEM 2024 tratou da temática. Propôs a seguinte reflexão: “desafios para a valorização da herança africana”.
Tornar a lei mencionada uma política de estado se faz premente. Dentro desse contexto, formular projetos para disseminar a literatura afro-brasileira é um dos caminhos. Assim, vamos expandindo o pensamento antirracista e fomentando a pluralidade. Uma sociedade só pode evoluir plenamente quando reconhece o seu todo, escuta e reverbera as múltiplas vozes.
Por Romênia Mariani