Peter Norton, autor do livro “Autonorama”, questiona marketing das montadoras e a idealização da tecnologia
Por Gabriel Gama, compartilhado de A Pública
Ingrid Veloso
Em viagem ao Brasil para o lançamento de seu livro “Autonorama: uma história sobre carros inteligentes, ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva” (Autonomia Literária e Fundação Rosa Luxemburgo), o historiador da tecnologia Peter Norton concedeu entrevista para a Agência Pública e explicou porque não enxerga os carros elétricos como uma solução para a transição energética.
Professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, Norton é reconhecido por pesquisas sobre a história dos carros e o lobby da indústria automobilística. Sua publicação mais recente trata sobre a ilusão de que os carros elétricos e autônomos resolverão os problemas de mobilidade urbana.
“Os carros elétricos são uma distração. Eles divergem nossa atenção das coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que a eletrificação não é necessária, ela é. O problema é a forma como ela está sendo apresentada, como se fosse uma solução milagrosa”, explica o historiador à Pública.
Norton defende que, quanto mais uma nação é dependente dos automóveis, mais difícil é resistir a eles. “É um paradoxo, porque são justamente os países mais dependentes de carros que precisam implementar mudanças com urgência.”
Em sua visão, os carros elétricos precisam ser problematizados. “Quando pensamos em veículos elétricos, a primeira coisa que vem à cabeça é um SUV movido a bateria, que é o pior tipo possível de veículo elétrico. Por que não pensamos em bicicletas, bondes ou trens elétricos?”, provoca.
O pesquisador pondera que a eletrificação dos carros pode ser útil, mas não deve ser encarada como uma solução definitiva, especialmente se considerados os impactos negativos da exploração de minérios para fabricação de baterias em países do terceiro mundo. “O Sul Global deve se unir em protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.”Lançamento do livro “Autonorama: uma história sobre carros inteligentes, ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva”
Confira a entrevista completa.
O que são “futuramas” e por que o livro se chama “Autonorama”?
Há cerca de 100 anos, a General Motors descobriu uma maneira de vender muito mais carros do que a Ford já havia vendido. A estratégia era comercializar não só para consumidores individuais e reforçar a atração da posse de um carro, mas também vender futuros na forma de promessas, normalmente situados dali a 20 anos. Futuros em que as pessoas dirigiam para todos os lugares sem qualquer atraso e com estacionamento grátis. É um futuro impossível, não podemos redesenhar as cidades para tornar isso possível.
É exatamente nesse ponto que a venda de futuros se tornou vantajosa, porque enquanto o futuro não chega, ninguém pode dizer que é impossível. A General Motors introduziu o termo em 1938 e chamou essa técnica de “futurama”, a combinação de futuro e diorama, palavra grega que significa apresentação. Futurama é uma maneira de vender o futuro tornando-o visível na forma de um modelo de transporte. Como a dependência dos carros não funciona, o conceito de futurama falhou.
Em 1964, a GM tentou de novo e anunciou o segundo futurama para restaurar sua credibilidade: a promessa da vez eram os transistores elétricos, que estavam bombando na década de 1960. É claro, os transistores não resolvem o problema da dependência dos carros, mas esse não é o ponto: a tecnologia é tão fantástica que, por si só, consegue persuadir as pessoas a acreditar no impossível.
O terceiro futurama, dos anos 1980, envolveu os microprocessadores, com rodovias inteligentes e redes de circuitos integrados – tudo isso também falhou.
Só nos Estados Unidos, foram bilhões de dólares jogados fora. Toda vez que uma promessa de futurama falha, outras são inventadas, e cada uma envolve as melhores tecnologias de ponta da sua época. Hoje, a promessa é o carro elétrico, supostamente autônomo, por isso a palavra “autonorama”. Na verdade, um carro não tem nada de autônomo, segue padrões já estabelecidos e gera dependência.
No livro, o senhor diz que os carros elétricos não são a solução para a transição energética. Por quê?
Eu diria que é pior do que eles não serem uma solução, os carros elétricos são uma distração. Eles divergem nossa atenção das coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que a eletrificação não é necessária, ela é. O problema é a forma como ela está sendo apresentada, como se fosse uma solução milagrosa.
Carros como os SUV’s precisam de baterias que pesam 500kg, um modo de locomoção que só é viável para atender 1 ou 2% da população mundial. Isso com o enorme custo ecológico da destruição causada pela mineração e todas as catástrofes relacionadas. Temos outras excelentes possibilidades, mas elas não são adotadas, porque há muito dinheiro envolvido em promessas de coisas que não funcionam, mas podem milagrosamente funcionar graças à “mágica da tecnologia”.
Se uma empresa quer ganhar dinheiro, ela não pode dizer isso para as pessoas que desejam comprar seus produtos. Em vez disso, ela pode dizer que seus produtos salvam o planeta, e nesse caso os alvos não são somente compradores individuais, mas também governos que criam políticas e subsidiam baterias de carros elétricos, baseados na premissa de que eles são uma solução. As empresas influenciam as decisões dos governos para aumentar suas vendas. Essa distração funciona, é efetiva. As companhias são inteligentes em mostrar visões de futuro que pareçam atraentes e com credibilidade, embora nunca sejam alcançadas.
Uma das vantagens que as empresas têm sobre nós é que nossa memória coletiva é muito curta. Todo mundo aprende a não encostar em um ferro quente, depois de uma experiência traumática com isso – nossa memória individual é boa. Porém, falhamos na memória coletiva. Quase ninguém sabe que as promessas de que a tecnologia fará com que a dependência do carro funcione são apresentadas para nós há pelo menos 90 anos. Nunca funcionou e nunca funcionará, porque a tecnologia não pode fazer funcionar a dependência do carro.
Então o problema está na dependência do carro em si, e não na fonte de energia usada para fazê-lo funcionar?
Os automóveis são úteis para alguns objetivos, mas nem tanto para outros. Por exemplo, uma chave de fenda é boa para apertar parafusos, mas não para martelar um prego. Os carros podem ser ferramentas interessantes para alguns propósitos, o problema é que as indústrias persuadiram governos e consumidores a enxergá-los como a solução para todas as situações.
Ao redor do mundo, a distinção entre decisões de governos e de empresas se confunde, porque as corporações usam seus recursos para influenciar políticas públicas – elas fazem uma pressão mais eficiente sobre os governantes do que os próprios eleitores. A população ainda pode cobrar e pressionar pela redução dessa influência, mas o maior desafio é convencer as pessoas de que a dependência dos carros é opressiva, e não libertadora. Quando vivemos em um mundo em que ter um carro é uma necessidade para ir até o trabalho, qualquer possível restrição ao seu uso é entendida como uma ameaça. Enfrentamos uma grande dificuldade em mostrar para as pessoas que existe um futuro mais libertador para além da dependência dos carros.
O senhor acredita que essa visão idealizada sobre os carros está ligada a menores investimentos em transporte público?
Certamente sim. Muitos especialistas dizem que não injetamos tanto dinheiro em transportes públicos porque as pessoas preferem se locomover em automóveis — é a interpretação que eles têm principalmente em regiões dos Estados Unidos, o país com a maior dependência de carros da Terra. Essa é uma maneira estúpida de interpretar os dados, dirigir em locais sem outra opção a não ser os carros não significa que as pessoas preferem dirigir.
Quanto mais um país é dependente dos carros, mais difícil é resistir a eles. É um paradoxo, porque são justamente os países mais dependentes de carros que precisam implementar mudanças com urgência.
Na edição brasileira, o senhor escreve: “Com ciência contratada, [as indústrias automobilísticas] constroem muros de autoridade para proteger suas promessas das perguntas difíceis que devemos fazer a qualquer inovação”. Por que é importante questionar as inovações?
É interessante observar que, quando pensamos em veículos elétricos, a primeira coisa que vem à cabeça é um SUV com bateria, que é o pior tipo possível de veículo elétrico. Por que não pensamos em bicicletas, bondes ou trens elétricos?
As empresas que querem vender automóveis e emplacar a dependência dos carros são inteligentes. Elas aprenderam que se conseguirem associar seus produtos com a tecnologia mais impressionante e incrível disponível, a tecnologia vai trabalhar para persuadir as pessoas a comprar o que quer que esteja à venda.
O escritor de ficção científica Arthur C. Clarke dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Isso é verdade, as tecnologias têm o poder de tornar o impossível possível. E deve ser sempre a última versão, a mais nova, a mais impressionante. Se as empresas associarem os carros robóticos com novas tecnologias, isso dá a elas a vantagem de dizer que o impossível é agora possível.
Isso gera um desperdício imenso de recursos, cerca de 200 bilhões de dólares foram gastos com o desenvolvimento de carros robóticos que nós não precisamos e não funcionam para atender a maioria da população, são caros demais e impraticáveis. É uma tendência que desvia recursos e atenção, criando credibilidade quando ela não está garantida. Só piora nossos problemas, tirando dinheiro de pesquisas em coisas que funcionam.
Os carros elétricos são anunciados como uma solução para as mudanças climáticas e a redução de emissões de gases do efeito estufa. Como o senhor explicaria os problemas que eles podem causar para alguém que só enxerga o lado positivo?
Eles são uma solução até certo ponto, mas não resolvem todos os problemas. Eu diria que os carros elétricos movidos a baterias são úteis, porque podem contribuir para melhorar o cenário. Mas não podemos chamá-los de solução, porque isso implicaria resolver todos os problemas e não fazer qualquer crítica a eles. Reconhecê-los como úteis é também reconhecer que podemos ir além deles.
Quando vejo uma propaganda desses veículos no meu país, quase sempre é um enorme SUV com uma bateria que pesa pelo menos 500kg e trabalha para locomover uma única pessoa. Cerca de 97% da energia elétrica da bateria é usada para mover o veículo e a bateria, e apenas 2 ou 3% são usados efetivamente para mover a pessoa que está dentro do automóvel. Só isso já pode ser um fator de desconfiança sobre os carros elétricos, mas fica ainda pior quando entendemos que o marketing desses veículos presume que os minérios necessários para o funcionamento das baterias, como níquel, cobre, lítio, cobalto e manganês, serão suficientes.
Se cada norte-americano dirigir um SUV movido a uma bateria de meia tonelada, isso envolverá a destruição do Sul Global: devastação do norte do Chile com a mineração de cobre, da República Democrática do Congo com a exploração de cobalto, e até mesmo de regiões do Brasil, onde as empresas já estão em busca de novas reservas de lítio. O Brasil tem um motivo ainda mais forte do que os Estados Unidos, Europa e China para questionar o futuro prometido com os carros elétricos, porque essas promessas só são possíveis às custas do Sul Global.
Durante a minha época de universidade, eu ouvia colegas da escola de engenharia dizerem coisas como “nós temos que aceitar a existência de zonas de sacrifício para realizar a transição energética”. Em outras palavras, áreas que desistimos de proteger e apenas destruímos para conquistar minérios. Como esse discurso parte de pessoas vivendo em um país [os Estados Unidos] cujas regras ambientais restringem a mineração de metais raros, é lógico que essas “zonas de sacrifício” ocorrerão em países distantes e com mercados que mal podem comprar carros elétricos. O Sul Global deve se unir em protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.
Se os carros elétricos não são a solução, onde devemos apostar nossos esforços?
Os carros elétricos são úteis, mas não são a solução para a transição energética, assim como bicicletas, ônibus e trens não são soluções. Tudo depende do objetivo que pretendemos alcançar, e só depois de refletir sobre isso é que podemos decidir qual a melhor ferramenta para atendê-los.
A boa notícia é que temos uma grande caixa de ferramentas com várias opções ao nosso dispor. Porém, a maioria dos outros meios de transporte além do carro são negligenciados, porque não geram tantos lucros quanto a indústria automobilística.
Existe um conceito chamado pirâmide da mobilidade, que tem um topo, simbolizado pelos meios de transporte que devemos privilegiar, e uma base, onde estão as coisas menos importantes. Atualmente, no topo estão os carros e na base os pedestres; no meio dos dois, há o transporte público e as bicicletas. Essa é a pirâmide que herdamos nas últimas décadas, mas podemos invertê-la, colocando os pedestres no topo e os carros na base. A ordem de prioridade deve ser: pedestres primeiro, em segundo bicicletas (incluindo elétricas), depois outros tipos de micro mobilidade, seguidos por bondes, ônibus e trens elétricos e, por fim, os carros.
Recentemente foram instalados semáforos inteligentes na cidade de São Paulo, que analisam o fluxo de carros e calibram o tempo de abertura e fechamento dos sinais para otimizar o trânsito. Qual sua análise sobre esse tipo de tecnologia?
Os primeiros semáforos sincronizados da história, não por sensores digitais mas sim por aparatos mecânicos, datam de 1926, em Chicago. Eles eram sincronizados de tal maneira que os condutores que dirigissem a uma certa velocidade passavam por sinais verdes um atrás do outro.
Costumamos nos perguntar se as tecnologias funcionam ou não, mas o problema é que elas funcionam às custas de outros fatores que não valorizamos, tirando poderes de um grupo e dando para outro. O que aconteceu em Chicago naquela época foi o mesmo que está acontecendo agora em São Paulo: os semáforos podem ser calibrados para favorecer os carros, os pedestres ou outros propósitos. E isso determina quem leva vantagem e quem se prejudica.
Então, os semáforos inteligentes podem ser úteis, desde que valorizem os pedestres, ainda mais em uma cidade enorme como São Paulo. Temos vários motivos para favorecer os pedestres, mas se for feito o contrário, perde o sentido. No fim das contas, é o poder que determina isso.
Edição: Bruno Fonseca