Carta Aberta a Eliane Cantanhêde, com cópia para Janja e Alice

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Vocês, mulheres, devem voltar para a cozinha?

Compartilhado de Congresso em Foco




Eliane Cantanhêde, admiro você desde que a conheci, na Folha de S.Paulo, na Globo, na GloboNews, no Estado de S. Paulo… Você é uma excelente jornalista, bem-informada, extremamente assertiva nos comentários, além de ter ótimas fontes. Vi você várias vezes nos corredores do Congresso Nacional.

Mas, na semana passada, você externou algo que permeia o senso comum. Você falou que a Janja não está seguindo a cultura, o protocolo, a liturgia do cargo de primeira-dama (conferir aqui, no relato do Uol).

Bem, a Janja é uma militante afiliada ao Partido dos Trabalhadores desde 1983, socióloga, uma pessoa que tem luz própria, uma capacidade de organização fantástica, uma habilidade no trato com a cultura. É uma lutadora pela igualdade entre homens e mulheres. É uma mulher ‘babadeira’. Adotou a Resistência, a cachorrinha de rua que frequentou a vigília em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba enquanto o Presidente Lula estava preso.

Eu queria me apresentar.

Sou Toni Reis, sou gay, professor, especialista em sexualidade humana, mestre em Filosofia (estudei ética e sexualidade), doutor em Educação e tenho dois pós-doutorados em educação e diversidade de gênero. Sou ativista e militante pelos direitos humanos de pessoas LGBTI+ desde os anos 1980.

O que me levou a escrever estas linhas foi que sua fala me fez lembrar a minha adolescência. Quando contei que eu não era heterossexual, minha família pediu que eu fosse discreto e não contasse para ninguém, poderia “sujar” o nome da família.  Na escola, uma professora falou: “Isso pode ser uma doença. Sugiro procurar um médico”. O saudoso Padre Sigismundo, que Deus o tenha, falou com todas as letras: “Você é um pecador e um doente”. E recomendou: “Recomponha-se, peça perdão e se cure”. Tudo isso porque eu não seguia os cânones da heteronormatividade compulsória existente…

A vida passou. Deixei tudo isso para trás, me assumi como gay e passei a não ter medo ou vergonha de ser o que sou, independente do que o senso comum pudesse querer que eu fosse. Casei-me com David há 33 anos, adotamos dois filhos e uma filha, a Alice, que agora está com 19 anos, cursando Administração, indo muito bem na faculdade.

Sempre ensinamos que lugar de meninas jovens e mulheres é o lugar que quiserem. Não ensinamos a Alice a ser dona de casa. Procuramos ensinar os dois filhos e a filha a agirem com igualdade na realização das tarefas em casa e no trato entre eles. Está dando certo. Na sua festa de 15 anos, que ela pediu, fizemos um baita de um festerê, num clube tradicional em Curitiba. Ela, toda autônoma, escolheu o tom azul para vestir. Fomos criticados por alguns amigos que falaram que festa de 15 anos é uma tradição machista. Mas seguimos em frente, fizemos a festa, sempre olhamos os álbuns de fotos. Agora a Alice está namorando o Bruno, que sempre brinca: “Tenho dois sogros e nenhuma sogra”. A relação deles não é marcada pelo machismo.

As mulheres na sociedade sofreram muito pela cultura patriarcal, machista e muitas vezes misógina. Na Bíblia, Paulo já dizia que elas tinham que ficar “caladas” e que deveriam ser “submissas aos seus maridos”. Veja o que alguns filósofos falaram sobre as mulheres:

“Ideias desconexas, raciocínios ilógicos, ilusões tomadas por realidade, analogias vazias transformadas em princípios, uma disposição de espírito fatalmente inclinada à destruição: essa é a inteligência da mulher” (Proudhon, 1809-1865).

“As mulheres são passíveis de educação, mas não são feitas para atividades que demandam uma faculdade universal, tais como as ciências mais avançadas, a filosofia e certas formas de produção artística” (Hegel, 1770-1831).

“O que é a verdade para uma mulher? Desde o início, nada foi mais alheio, repugnante e hostil à mulher do que a verdade – sua grande arte é a mentira, sua preocupação máxima é a mera aparência e beleza” (Nietzsche, 1844-1900).

No Brasil, as mulheres só conseguiram o direito ao voto em 1932. O argumento dos que foram contra o voto das mulheres era que elas não tinham intelecto e deveriam ficar restritas ao lar; se elas tivessem voz ou protagonismo, diziam, a família tradicional seria destruída. Não foi o que aconteceu.

Isso nos mostra que a inferiorização das mulheres é milenar. Não precisamos ficar reproduzindo esse discurso. Precisamos agir para promover a igualdade entre mulheres e homens.

Voltando à Janja. Pelo que li, pelo que conheço, pelo que os outros falam, a Janja não é uma mulher de cama e mesa, e ela não vai ficar cuidando só da área social ou cumprindo protocolos. Como companheira, amante, que compartilha afetos com o presidente Lula, este, como todo ser apaixonado, quer tê-la o mais perto possível o tempo todo. Afinal, Lula já sofreu tanto. Foi preso, lutou, saiu do segundo mandato com 87% de popularidade. Merece o carinho, a confiança, a admiração da pessoa pela qual está apaixonado.

Janja tem que estar onde ela quiser. Isso se chama autonomia e livre arbítrio.

Aproveitando, temos que refletir se esse posto de primeira-dama deveria ou não ser extinto, até porque os tempos mudam. Vide o caso do Rio Grande do Sul: o marido do governador eleito será primeiro-“damo”, primeiro-cavalheiro?  Os tempos mudam, a cultura muda e a linguagem também. Atualizar-se, “aggiornar”-se é um dever de todos, porque Eliane Cantanhêde, ficar aferroada a protocolos que oprimem e deixam infeliz não é de bom tom. Como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos (que inclusive foi protagonizada por uma primeira-dama, Eleanor Roosevelt, em 1948), todos nós nascemos livres e iguais em dignidade e direitos. A nossa Constituição Federal corrobora isso quando diz que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Já pensou, Eliane Cantanhêde, você fazendo o mesmo comentário sobre a atuação da Eleanor Roosevelt na CNN ou na Fox News?

Que viva a Janja e seu protagonismo! Que se mantenha vivo o protagonismo de Anita Garibaldi, Chica da Silva, Chiquinha Gonzaga, Maria Quitéria, Dandara, Nísia Floresta, Tarsila do Amaral, Enedina Marques, entre outras que não se curvaram ao senso comum quanto ao papel da mulher na sociedade. Obrigado a vocês por tornar nosso Brasil menos misógino, menos patriarcal, menos machista.

Nesse sentido, nós LGBTI+ não voltaremos para o armário, negros e negras não voltarão para a senzala, e as mulheres não voltarão para a cozinha e/ou alcovas, embora às vezes cozinha seja bom e alcova seja ótimo depois de uma sobremesa! Não são padres e pastores fundamentalistas, machos alfas ou quaisquer pessoas que vão dizer a nós como devemos nos comportar, nos silenciar, nos invisibilizar.

Como disse Simone de Beauvoir (1908-1986), “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” (Rosa Luxemburgo, 1871-1919).

14 de novembro de 2022.

Autoria

TONI REIS Professor, formado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é especialista em sexualidade, mestre em Filosofia e doutor em Educação. É Diretor-Presidente da Aliança Nacional LGBTI.tonireis@congressoemfoco.com.br

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