Que o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha represente, antes de tudo, a busca pelo bem viver
Por Andréia Coutinho Louback, compartilhado de Projeto Colabora
Registro meu apelo a todas mulheres negras — o que temos feito por nós mesmas? Se julho é desenhado por trinta e um dias intercalados entre celebrações e campanhas centradas no Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, deveríamos falar tanto quanto sobre saúde. Em tempos pré-eleitorais, cuja pauta de representação política está agressivamente em voga, é inaceitável que a gente perca de vista a silenciosa pergunta: como sobreviveremos física e emocionalmente em um país racista que normalizou nossa morte?
Eu poderia falar de acesso ao sistema de saúde, de saúde mental ou de segurança pública para, nós, mulheres negras. Também poderia refletir sobre como, desde cedo, desaprendemos a responder sobre “quem cuida de quem cuida”. O cerne, talvez, esteja na estatística negativa persistente, que aponta para cenários longe de quaisquer coincidências.
O bem viver nunca foi sobre sobrevivência, apenas. É uma tríade de acesso, dignidade e, sobretudo, a possibilidade de escolha. Historicamente, nos foi negado o direito de escolher o autocuidado, sem que isso representasse uma faceta do egoísmo ou a privação de outros direitos fundamentais.
Uma leve pontada no abdômen. Uma dor de cabeça diária, nada grave. A pressão que sobe e desce. São pequenas negligências que facilmente podemos deixar para lá, afinal, olha quantas tantas coisas estão por fazer. Adiamos exames, ou quando realizamos, não levamos os resultados de volta ao médico. O Brasil é um país onde pagar um plano de saúde é luxo e, por muitas vezes, não temos tempo e disposição para a lista de espera do Sistema Único de Saúde da região. Na fila de prioridades coletivas, estamos em último lugar.
Mas quando se trata de dados de pesquisas, estamos quase sempre em primeiro lugar. Estudos do American Journal of Obstetrics and Gynecology indicam que mulheres negras têm maior probabilidade de desenvolver miomas em comparação com mulheres de outras etnias. Tratam-se de tumores benignos no útero, que se alimentam de sangue, e podem crescer (ou não) causando dores pélvicas, anemias, sangramento menstrual intenso, pressão abdominal, infertilidade e possíveis complicações na gravidez.
No Brasil, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o risco de desenvolvimento do câncer de colo de útero é 44% maior em mulheres negras. Em decorrência da doença, elas têm 27% de chances a mais de morrer do que mulheres brancas, por exemplo. Há poucos dias, relembrei por meio do Portal Lunetas que, desde abril de 2024, o nosso país passou a adotar a dose única da vacina contra o HPV. Com essa estratégia, o Ministério da Saúde busca reduzir as taxas de câncer de colo de útero das mulheres mais vulnerabilizadas em dimensão nacional.
Lembrando que mulheres negras compõem o maior grupo populacional do Brasil e representam 60,9% dos usuários do SUS. Os exemplos de patologias mencionadas anteriormente são parte de uma infindável discussão não apenas sobre acesso, mas também prevenção e tratamento. Nossas barreiras vêm de longe. O acesso a cuidados de saúde (consultas básicas, preventivo, ultrassonografia e ressonâncias), o que pode atrasar muito um diagnóstico e o tratamento precoce. Há também disparidades no tipo de tratamento oferecido e aceito, com algumas pesquisas indicando que mulheres negras têm menos probabilidade de serem recomendadas para tratamentos conservadores em comparação com histerectomias — remoção cirúrgica do útero, podendo ser total, subtotal ou radical.
Nesta terça-feira (24/07), em Brasília, o Ministério da Saúde promoveu um evento intitulado Pela Saúde da Mulher Negra, justamente para debater a promoção da saúde integral das mulheres negras como prioridade do governo federal – de forma transversal. O encontro fechado recebeu especialistas e representantes de diferentes geografias para reunir perspectivas de ação e políticas públicas específicas em prol deste grupo populacional.
Minha tia e minha mãe, irmãs e mulheres negras, tiveram miomas e, posteriormente, retiraram o útero. No momento em que minha coluna é publicada, estou no centro cirúrgico para operar e retirar miomas uterinos, que evoluíram assustadora e silenciosamente. Mesmo eu, com mais recursos e informações disponíveis comparado à época das minhas mais velhas, consegui me priorizar de imediato. Procrastinei, negligenciei, levei muito mais tempo para enfrentar um tratamento custoso e complexo. Segundo profissionais da ginecologia natural, miomas sugam a nossa energia vital, porque estão localizados em uma área de criação, de gestar processos, de parir mesmo. Definitivamente, o adoecimento da região pode ser fatal em muitos sentidos.
Antes tarde do que muito tarde, entendi que sem saúde não me sobra muita perspectiva. Por isso, finalizo com o mesmo apelo inicial às mulheres negras jovens: insistam no SUS, façam exames regulares, procurem clínicas populares, não desistam de pequenas investigações do próprio corpo. Às mulheres negras adultas, como eu, espalhem informações acessíveis relacionadas à nossa saúde ginecológica, dialoguem com nossas crianças e juventudes, ajudem financeiramente, se possível. E, por fim, às mulheres negras que vieram antes de nós: eu sou, porque somos. Independentemente das memórias geracionais, juntas, seguiremos lutando ativamente pela preservação da vida e o tão sonhado bem viver.
Que o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha represente, antes de tudo, a busca pelo bem viver com saúde em primeiríssimo lugar, luta por dignidade e representações políticas que não desistam da nossa sobrevivência. Afinal, sem saúde, o que é uma jornada de militância?