Nas sacadas do sobrado, da eterna São Salvador
Há lembranças de donzelas, do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem
(Trecho de “Você Já Foi à Bahia?”, de Dorival Caymmi, utilizado por Caetano Veloso em “Terra”)
Por Lourenço Paulillo, cronista e poeta
Revisitando meus antigos textos e crônicas, encontrei esta carta escrita, e inédita até agora, há 59 anos, em 1965. Eu tinha 22 anos (hoje estou com 81), após minhas primeiras férias na Avon, quando peguei um busão e fui conhecer Salvador, sonho antigo na época, inspirado nos romances de Jorge Amado e nas lindas canções de Dorival Caymmi.
CARTA À BAHIA
Querida Bahia,
Conheci você em janeiro e já estou com saudades. Encontrei-a de madrugada. Foi quase magia, na manhã seguinte , reconhecer o velho forte de Santa Maria e o mar luminoso da Barra, povoado de saveiros, bem à minha frente.
Perdoe, Bahia, mas devo confessar que procurei conhecer, um a um, todos os seus encantos. Lembro-me que os meninos faziam sua pelada na areia quando iniciei a caminhada. Percorri sua face jovem, de ruas e avenidas arborizadas, muitas acácias floridas e mangueiras carregadas.
Você não deve ter percebido, eu ia muito quieto, curioso; encontrei-me no Terreiro de Jesus, das belas igrejas de ouro, pausa amena para meditação e silêncio. É sua joia de estimação, poderia apostar!
Mais alguns passos e desci as ladeiras seculares, úmidas e estreitas, calçadas de grandes pedras, que velam fielmente sua mais fascinante e estranha face, Bahia, sua velha face. Enfileiram-se sobradões de grossas e altas portas, grades nas sacadas estreitas.
Figuras humanas curiosas aparecem nos grandes vãos das janelas ou nos altos degraus das portas. Às vezes confundem-se no escuro interior das casas, escuridão que esconde miséria.
Bahia, estas ladeiras primitivas transportaram-me ao passado, quase estranhei a triste ausência dos escravos ao chegar ao Pelourinho. Se você fosse árvore, Bahia, essas ladeiras seriam suas raízes.
À noite, Bahia, estava de volta à Barra, mas pensando ainda nos seus encantos. Sabe que eu procurei o fundo da lagoa do Abaeté pra ver a cor? E sabe que, de medo de seus molhos apimentados demais, acabei comendo um acarajé quase insosso?…
Crescera a noite, Bahia, o velho forte guardava o sono dos pescadores em seus saveiros ancorados, a lua alaranjada mergulhou no mar. Só eu fiquei acordado, o espírito repleto de sua beleza e seu mistério infinitos, nos ouvidos ressoando ainda o som exótico dos berimbaus do mercado.
Desculpe, Bahia, eu não ser poeta para cantá-la…
Mas, só por tê-la conhecido, muito obrigado, Bahia!
LP/ julho 1965.
Título inspirado na canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi