Carta aos franceses: nas mãos de vocês está o destino das democracias

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Por Jamil Chade, do UOL

Escrevo para fazer um apelo: ao irem às urnas, não caiam na tentação populista da extrema direita. Nas mãos de vocês, está o destino sempre frágil da liberdade, dos direitos humanos e da própria democracia.

Vocês deram ao mundo a arte da cozinha, e a arte de Hugo, Verne, Balzac, Flaubert, Zola e Proust. Vocês inventaram o paraquedas, a fotografia e o cinema. Contribuíram de forma decisiva para o pensamento ocidental com Descartes, Camus, Sartre, Beauvoir, Piaf ou Ernaux.

Vocês promoveram uma revolução que abalou as estruturas do poder pelo mundo, inspirou quem buscava liberdade e ainda inventaram a separação constitucional entre o estado e a religião. Graças a Deus.

Como não se lembrar de que Churchill, ao justificar ironicamente o motivo para entrar na guerra contra os alemães, afirmou: “Lembrem-se, senhores. Não estamos lutando apenas pela França. É pela Champagne!”.

Portanto, escrevo para fazer um apelo: ao irem às urnas, não caiam na tentação populista da extrema direita. Nas mãos de vocês, está o destino sempre frágil da liberdade, dos direitos humanos e da própria democracia.

Sim, vivemos a era da incerteza e instituições não estão dando conta de atender às novas demandas de uma sociedade angustiada. Referências e garantias foram corroídas. Sim, a democracia fracassou para uma parcela da população, que se vê cada vez mais distante da tomada de decisões. E, portanto, do sentimento de controle de seus destinos.

Os partidos tradicionais nos traíram e usaram as estruturas de poder para se perpetuar no poder. A desigualdade atingiu níveis obscenos e o estado é incapaz de promover uma distribuição justa.

Mas não serão os vendedores de ilusão, os charlatães dispostos a lucrar com o ódio, os mentirosos, os xenófobos, a misoginia, as pessoas sem escrúpulos que instrumentalizam a religião e que criam abismos entre irmãos que terão as respostas.

Falo por experiência própria. De onde eu venho, o Brasil, a extrema direita tentou desmontar justamente aqueles que eram os pilares da construção moderna que a França deu ao mundo: os direitos humanos, uma nova concepção da república e as bases da laicidade.

Sequestraram o Estado e transformaram o mandato de poder que receberam das urnas em um cheque em branco para violar direitos fundamentais. Apesar do impacto que isso teve no Brasil, nada se compara ao abalo que ocorreria se o desfile na Champs Élysées for marcado pelos símbolos da extrema direita. O controle do poder por esse movimento na França será um divisor de águas para as democracias.

Há 20 anos, quando cheguei ao Velho Continente, falar em Jean-Marie Le Pen exigia que a pessoa reduzisse o tom de voz. Sim, era uma vergonha pronunciar seu nome.

Cheguei a estar em uma ocasião com ele, em sua casa, nos arredores de Paris. Perguntei se era racista. A resposta foi reveladora: “claro que não”. Segundos depois, se aproximou e sussurrou. “Tenho até uma empregada polonesa”.

Hoje, os herdeiros desse grupo — mais sofisticados, mas não menos racistas — manipulam a comunicação para ganhar um ar de civilizados. Ainda assim, não escondem que vão propor leis para expulsar estrangeiros, que vão reservar cargos para franceses e chegam a questionar a Constituição.

Propõem uma reforma do sistema de ensino com cunho nacionalista, leis que são incompatíveis com o desafio existencial das mudanças climáticas e retrocessos para as mulheres e meninas.
Das cinzas de um dos momentos mais nefastos da humanidade, vocês criaram no século passado um projeto de paz inédito e de enorme êxito: a União Europeia.

Todos nós conhecemos o que a extrema direita é capaz de fazer, uma vez no poder. A história não mente. De fato, quem manipula são eles.

Em setembro de 2022, a Câmara Municipal de Perpignan, controlada pela extrema direita, decidiu nomear uma praça na cidade em homenagem a Pierre Sergent, chefe de um grupo terrorista armado e ultra-racista, que atuou, durante a guerra da Argélia, contra a sua independência. Em 2014, em Villers-Cotterêts, o prefeito de extrema direita Franck Briffaut recusou-se a comemorar a abolição da escravidão.

Admirador do país e da cultura de vocês, John F. Kennedy dizia que todo homem tem dois países: o dele e a França. Quando forem votar, a partir deste fim de semana, peço: Não deixem o mundo sem uma de suas maiores referências. É a sobrevivência da democracia que está em jogo.

Vive la France, Vive le Brésil et vive la République!
Jamil Chade

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