Por Leneide Duarte-Plon, compartilhado de Carta Maior –
Em sua fala aos franceses, ele disse que «existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado
« O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado-de Bem-Estar social (État-providence) não são custos ou encargos mas bens preciosos, vantagens indispensáveis diante das vicissitudes do destino ».
Em seu primeiro discurso depois do início da epidemia de coronavírus, em cadeia oficial de rádio e televisão dia 12 de março, Emmanuel Macron dessacralizou o mercado, anunciou o fechamento das escolas (do maternal às universidades) a partir de 16 de março e a manutenção das eleições municipais no domingo, dia 15.
Ele pediu a todos que respeitem as recomendações dos cientistas para o controle da pandemia que, segundo previsões, está apenas começando.
Diante de um discurso equilibrado e quase « esquerdista », o mundo político – a esquerda como a direita tradicional – se mostrou em sintonia com o apelo de Macron por uma França « unida no combate à maior crise sanitária que o país já viveu no último século. »
Como era de se esperar, houve algumas vozes dissonantes. Foram poucas e vieram sobretudo do Rassemblement National, de Marine Le Pen, para lamentar o não-fechamento das fronteiras, como se o vírus pudesse ser controlado pelo passaporte.
Para a esquerda, o ponto alto do discurso que Macron leu em tom grave e pausado, foi o reconhecimento dos limites ou falhas do modelo neoliberal, no qual o mercado quer dominar e organizar todos os setores da vida humana.
Macron não poderia ter sido mais claro :
« Caros compatriotas, precisamos amanhã tirar lições do momento que atravessamos, questionar o modelo de desenvolvimento que nosso mundo escolheu há décadas e que mostra suas falhas à luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado-de Bem-Estar social (État-providence) não são custos ou encargos mas bens preciosos, vantagens indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado. Delegar a outros nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de cuidar de nosso modelo de vida é uma loucura. Devemos retomar o controle, construir mais do que já fazemos, uma França, uma Europa soberana que controlem firmemente seu destino nas mãos. As próximas semanas e os próximos meses necessitarão de decisões de ruptura neste sentido. Eu as assumirei. »
Dizendo que a saúde não pode ser avaliada em termos financeiros, Macron afirmou que « o governo mobilizará todos os meios financeiros necessários para atender os doentes, para salvar vidas, custe o que custar ».
Edwy Plenel, jornalista e fundador do site Mediapart disse, em entrevista na televisão comentando o discurso presidencial, que o vírus vai ser responsável pelas respostas às demandas sociais, principalmente na área de saúde, que os franceses fazem ao governo há mais de um ano. « Esse vírus é revolucionário », brincou, acrescentando que Macron ficou surdo aos franceses que fizeram greve e manifestações e agora o vírus pode transformar positivamente o quadro.
« Até a privatização dos Aeroportos de Paris, combatida pela esquerda, foi suspensa. Esse vírus é revolucionário ».
Vítimas de cortes orçamentários e de uma gestão contestada pela maioria dos diretores de hospitais e médicos que fizeram greve por vários meses, o serviço hospitalar público francês, um dos melhores da Europa, é vítima do neoliberalismo aplicado à saúde pública. Universal, gratuito e de grande qualidade, ele cobre todo o território nacional, mas o hospital público, que assegura tratamento para a totalidade dos franceses, vinha se ressentindo da falta de pessoal e da gestão de modelo empresarial, instituída no governo Sarkozy.
Fracasso do neoliberalismo
A constatação de Macron de que « esta pandemia revela que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado » encheu de esperança os franceses que contestam o neoliberalismo, sobretudo na gestão dos hospitais públicos.
« Fazer com que se torne uma realidade concreta a vontade aparente de Macron de romper, de algum modo, com o modelo neoliberal, uma vez passada a crise financeira e sanitária, dependerá da relação de forças. Essas pessoas esquecem o que dizem, mudam de tema e podem nos iludir quando querem parecer que estão revolucionando tudo », analisou Christophe Ventura, pesquisador do Institut de Recherches Internationales et Stratégiques.
Para Ventura, esta crise prova o fracasso total do neoliberalismo, que teorizou a necessidade do uso de recursos públicos para salvar o sistema liberal quando este entra em crise sistêmica.
« A intervenção de Macron entra em contradição com o que ele fez até hoje mas faz sentido pois o neoliberalismo defende a necessidade de socializar as perdas, usar o Estado quando o sistema liberal entra em crise, como agora », diz.
Ele lembra que na crise de 2008, Sarkozy falara de « romper com o capitalismo descontrolado ». E pergunta : « Será que Macron vai mudar algo no modelo atual ou apenas socializar as perdas, como se fez em 2008 » ?
No discurso, Macron aproveitou para afirmar seu engajamento europeu e reforçar a construção de uma França e de uma Europa soberanas, que detêm seu destino em suas mãos. « As próximas semanas e meses necessitarão de decisões de ruptura neste sentido e eu as assumirei. »
Decisão crucial, quando se sabe que 98% do paracetamol francês é fabricado na China. E este é apenas um entre dezenas de exemplos extremos da louca mundialização econômica.
Se servir para ordenar o desenvolvimento mundial e frear a globalização desorganizada que tem como objetivo principal apenas o lucro, o coronavírus já terá sido útil.
Ficará provado que era realmente um vírus revolucionário, como diz Plenel.
Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, a autora lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti.