Carta ao editor, extensiva aos leitores, da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta missiva, César enumera suas preocupações cotidianas.
Eu, Washington, o editor, me antecipo para dizer ao César que eram 14 tripulantes da traineira que naufragou na Baía da Guanabara, proximidade da Ilha de Paquetá, durante o temporal do domingo à tarde, 05 de fevereiro.
Infelizmente, as notícias dão conta que cinco pessoas morreram e ainda há três desaparecidos (tristes dados de 06 de fevereiro por volta das 11 da manhã).
César, sobre as barcas para Paquetá, o governo do Estado e a empresa CCR fazem ondas, dignas do espanto de surfista no Havaí, de incertezas sobre o contrato que finda no próximo sábado, dia 11/02.
Nestas ondas, corremos o risco, moradores da Ilha de Paquetá que temos somente este meio de transporte, de ficarmos à deriva, se não naufragados. Já sofremos com as poucas barcas que nos são destinadas e corremos o risco de ficarmos sem as mesmas.
Vivemos numa época, caro César, digna de constatação de Eduardo Galerano de que temos mais náufragos do que navegantes no mundo em que vivemos.
Perdão pela extensão da resposta ao nosso articulista assustado. Vamos aos sustos do mesmo!
“Beija-flor, 6 de fevereiro de 2023.
Prezado Washington,
O que houve com a embarcação caiçara? Diga-me, amigo, mande-me notícias do ocorrido. Foi o tempo ruim que virou a embarcação com dez, doze pessoas a bordo? Estão vivas, mortas?
Recebi a notícia assustado, nunca imaginei que fosse virar um barco na Baía de Guanabara. Ingenuidade a minha, amigo, ingenuidade a minha.
São muitas as perguntas que quero lhe fazer, por exemplo, o fim da concessão da CCR. Diga-me em que pé está essa história toda também, assim que possível. Pelo que entendi, os moradores da ilha acabaram mais ilhados do que nunca, com horários cada vez mais restritos de saída e chegada de barcas.
Seja como for, a CCR sempre deixa à mostra o que gato enterra.
Para os que vivem em busca do lucro como bichos de luz que se deixam atrair pelas lâmpadas: muita racionalização pode gerar prejuízo.
Prezado editor, você sabe tanto quanto eu que moro em uma cidade que se fez famosa devido à escola de samba Beija-Flor de Nilópolis. É, a cidade vive em torno da escola de samba, que é bancada pelo jogo do bicho. Basta um olhar ao redor para se perceber as inúmeras bancas de jogos de bicho, que funcionam discretamente.
E maquininha tem também. Nunca gostei de jogar nada dessas coisas, sempre tive medo de me viciar. Para minha tristeza, estou aí, absolutamente dependente de rede social.
Mas deixemos de lado as lamentações. Meu filho, de doze anos, já chegou à fatal conclusão de que tudo nesta cidade gira em torno do carnaval e, por extensão, do jogo do bicho. Eu senti um tonzinho de raiva na voz do menino. Era como se a voz dele desse a medida de nossa ambição pequena.
A gente tem mesmo que ir longe, literalmente. Eu mesmo moro ao lado da antiga quadra da escola. Agora ela se tornou um depósito/almoxarifado, coisa do tipo. De duas semanas pra cá, tem pintado gente à beça para buscar fantasia. Vem tudo embrulhado em sacos plásticos, para não acabar com o efeito-surpresa. Mas dá para ver aqui e ali uma pontinha de estrela, um brilho, um não-sei-o-quê.
Conheço de dar bom dia seu zelador, o simpático Índio. É um boa-praça daqueles, folgazão. Tem a pele morena e na verdade é mais mestiço do que índio puro sangue. Eu diria que se trata de um caiçara, mas tenho medo de errar.
Gosto do sotaque do Índio, de lhe dar bom dia e de tê-lo como vizinho, mas não consigo entender muito do que ele diz quando ele bebe. Aí a coisa se complica, parece até que certas falas do meu amigo deveriam vir mesmo com legendas, como foi o caso do filme do “Shaolin do Deserto”, todo falado em cearês.
Eu não sei jogar no jogo do bicho. Que falha a minha, jamais poderei me considerar um beija-florense de carteirinha. Mas, se eu soubesse, não me faltariam palpites. Rapaz, você acredita que eu topei com dois cavalos atrapalhando o tráfego de manhã?
Eu a levar a minha filha para sua primeira aula na escola nova, e lá estavam os dois cavalinhos a revirar o lixo em frente ao sinal do supermercado Cristal, aquele que tem o que tinha o melhor preço de carne da região.
Os dois equinos estavam na maior tranquilidade revirando o bicho, digo, o lixo.
E ainda teria como palpite os belos passarinhos que cismam de se agarrarem às telas da minha varanda. Acho que tenho umas fotos deles. Já pintou até uma calopsita fujona – ou não seria uma maritaca fantasiada para o carnaval que se aproxima? Na ala, o nome seria “Pássaro da Fantasia no Eldorado do Carnaval”. Que tal?
Depois, no meu retorno ao aconchego do lar, topei com os mesmos cavalos, com uma matilha de bons vira-latas, com um gatinho morto, que foi o que me deu tristeza. Não gosto de ver bicho morto, me dá uma pena danada. Me dói fundo, acho que mexe no meu lado são Francisco.
É isto, meu prezado editor. O ano letivo se inicia esta semana para na semana seguinte ser interrompido para as necessárias comemorações da festa do rei Momo. Eu não sei sambar, não sei bater num coco, mas confesso gostar da alegria e irreverência que toma conta das ruas.
Aproveito os dias de folga para colocar meu planejamento escolar em dia ou, quem sabe, para aprender a jogar no bicho.
PS: Ainda bem que nosso Gigante Do Sul é forte como um touro (cantor e compositor gaúcho, Marco Aurélio, Vasconcellos, imenso no talento, na solidariedade e na amizade que esteve com a saúde um tanto abalada, mas já está bem).
PS2: Deixo aos amigos da coluna um poema decalcado do poema “O bicho”, de Manuel Bandeira.”
O Bicho, de Manuel Bandeira
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
O Bicho Revisitado (Cícero César)
A quem interessa
Que a miséria acabe?
Ao político, ao polícia, ao poeta, ao padre?
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.