E o Bem Blogado volta com um emocionate   miniconto –  #quarentextos  – da escritora e jornalista Sonia Nabarrete.

Música

Ambos estavam no mesmo asilo e a cada dia se cumprimentavam como se fosse a primeira vez porque tinham Alzheimer.

Logo esqueciam o rosto e o nome do outro para um mergulho interior em um ponto do passado, onde foram felizes.

Viveram em cidades diferentes, mas tinham histórias parecidas.  Os dois foram ativistas políticos.

Na quarentena, deixaram de receber visitas, mas não sentiram falta. Já não reconheciam os filhos nem os netos, e os outros moradores do asilo pareciam novos a cada dia.

Era como se estivessem em viagem, hospedados em um hostel, conhecendo sempre gente nova.

A TV era ligada todo dia na sala onde os idosos se reuniam. Ele e ela viam o noticiário, mas não conseguiam assimilar.

No final de ano, alguns músicos costumavam fazer um show para os velhinhos, mas agora, por causa da pandemia,  não puderam se apresentar.

Uma das cuidadoras começou a procurar na TV algo que os distraísse e acabou encontrando um documentário sobre os históricos festivais de MPB.

Geraldo Vandré cantava “E para não dizer que não falei das flores”, canção que acabou se transformando em um verdadeiro hino de resistência contra a ditadura.

Ele começou a cantar junto, bem alto. E ela cantou também. Cantavam com tal entusiasmo que os demais se animaram e fizeram coro.

Naquela tarde quente de novembro, uma pequena revolução aconteceu, mas o casal de cantores não se lembrava de mais nada no dia seguinte.

Porém, sorriram, cúmplices, um ao outro, no café da manhã.