O estado norte-americano tenta redesenhar seus distritos eleitorais, reduzindo a representatividade negra. Prática é comum em governos estaduais – e mostra fragilidade de um dos pilares do regime democrático: o princípio da igualdade do voto
Por Glauco Faria, compartilhado de Outras Palavras
Sempre pretensamente preocupados em relação ao suposto grau de democracia de outros países, raras vezes os Estados Unidos refletem sobre um dos pilares de qualquer regime democrático, o seu sistema eleitoral. E uma discussão recente surgida a partir de uma decisão da Suprema Corte do país, em 8 de junho, mostra o quão frágeis ainda são os mecanismos para garantir a igualdade de voto por lá.
Na ocasião, por cinco votos a quatro, a corte rejeitou uma redefinição dos distritos eleitorais aprovada por parlamentares do Alabama que, na prática, discriminava eleitores negros. Embora sejam 27% da população, eles formariam maioria em apenas um dos sete distritos eleitorais do estado, gerando uma evidente sub-representação.
Aqui um parênteses mais longo para mapear em linhas gerais como é o sistema eleitoral estadunidense. O voto é distrital e existem 435 distritos congressionais na Câmara dos Representantes. Cada um elege um único congressista e os eleitores registrados só podem votar em candidatos que concorram a cargos naquele distrito. A mesma lógica vale para a eleição de representantes estaduais.
Os Estados Unidos realizam um censo populacional a cada dez anos que, como aqui, define o direcionamento de financiamentos, além de planejamento de obras públicas. Mas também tem como objetivo manter a representação igualitária do voto, sendo usado para redesenhar os distritos políticos.
O chamado processo de redistritamento varia de acordo com o estado. Na grande maioria deles é a legislatura estadual quem tem o controle do redesenho dos mapas, sendo que em muitos o governador tem o poder de veto. Alguns exigem a chamada supermaioria (dois terços), enquanto em boa parte basta a metade mais um dos legisladores para aprovar o plano. Comissões são formadas com graus distintos de poder, de acordo com o estado novamente, para estabelecer os novos mapas, sendo que há aqueles que são independentes e outros que contam com participação dos próprios representantes legislativos, de funcionários públicos ou de pessoas indicadas pelas lideranças políticas.
Os variados modelos permitem que aconteça o que houve no Alabama: o redesenho acaba, em muitas ocasiões, por favorecer quem está no poder. Estados com maioria republicana redefinem distritos para manter ou ampliar sua maioria, e os democratas invariavelmente fazem o mesmo quando estão no controle.
Trata-se do gerrymandering, expressão que tem origem no nome de Elbridge Gerry, um dos fundadores dos EUA, depois governador do Massachusetts e vice-presidente do país. No governo do estado, ele redesenhou os limites dos distritos fatiando o condado de Essex, à época um reduto político do Partido Federalista, rival da sua legenda, o Partido Democrata-Republicano. Após o novo mapa, que se assemelhava a uma salamandra (o “mander” do termo em inglês), conseguiu eleger três republicanos democratas em 1812, quando o condado havia escolhido cinco federalistas no pleito anterior.
E o Alabama?
Em meio à intensificação da luta dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, em 1965 o presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos de Voto, que proíbe práticas ou procedimentos de votação discriminatórios com base em raça, cor ou pertencimento a algum grupo linguístico minoritário. No entanto, ela vem sofrendo ataques de forma mais ou menos direta pelos estados, e não somente no redesenho dos distritos, como lembra a pesquisadora da Unicamp e especialista em relações entre política, direito e judiciário Celly Cook Inatomi, em artigo no Observatório Político dos Estados Unidos.
“O histórico de mudanças eleitorais em Legislativos estaduais desde a aprovação da referida lei demonstram, ainda, que diversos estados, entre eles o Alabama, continuaram promovendo medidas que dificultaram o exercício do voto por parte de pessoas negras e latinas, seja criando regras muito rígidas de registro eleitoral, seja fazendo questionamentos indevidos e constrangedores aos eleitores nos locais de votação, seja fazendo mapeamentos eleitorais que, ou anulavam, ou colocavam em desvantagem o poder de voto de contingentes populacionais das minorias em seus estados”, ressalta.
No mérito, a decisão da Suprema Corte confirmou uma medida liminar concedida anteriormente por um tribunal distrital, que observou então, em relação às eleições no Alabama, que elas eram “racialmente polarizadas”, com os alabamianos negros tendo “praticamente zero sucesso nas eleições estaduais”. Afirmava ainda que as campanhas políticas no estado eram “caracterizadas por apelos raciais evidentes ou sutis”, sendo que “a extensa história de práticas repugnantes do Alabama discriminação racial e eleitoral é inegável e bem documentada.”
A respeito do novo mapa, o que se vislumbra até agora é um descumprimento daquilo que decidiu a Suprema Corte dos EUA. Segundo a National Redistricting Foundation (NRF), entidade que busca garantir a elaboração de “mapas eleitorais mais justos”, a nova proposição do estado, já aprovada pelos comitês da Câmara e do Senado locais, fornece um redesenho que não assegura um segundo distrito com maioria de população negra em idade de votar, como determina a decisão.
“Está claro que os republicanos do Alabama não levam a sério seu trabalho e a aprovação de um mapa compatível, mesmo à luz de uma decisão histórica da Suprema Corte”, pontua Marina Jenkins, diretora executiva da National Redistricting Foundation. “Este mapa e o processo que levou a ele são tão enganosos quanto vergonhosos. Isso segue um padrão que vimos ao longo da história quando se trata de redistritamento no Alabama, onde uma legislatura predominantemente branca e republicana nunca fez a coisa certa por conta própria, mas teve que ser forçada a fazê-lo por um tribunal. Se a legislatura promulgar este mapa vergonhoso, ele será contestado no tribunal.”
Não é incomum que redefinição de distritos acabem indo parar no Judiciário dos Estados Unidos, mas, no caso do Alabama, não é apenas uma manobra para manter um partido no poder, sim uma ação discriminatória que põe em xeque a Lei dos Direitos de Voto e os próprios princípios da Constituição do país. Uma mostra de que auto-propaladas democracias têm muito a evoluir em seus sistemas, mesmo naquilo que seria o básico do regime, o direito e a efetividade do voto.