Novo livro de Luís Nassif traz exemplos revoltantes de banditismo jornalístico, político, judicial…
Por César Locatelli, compartilhado de Carta Maior –
Créditos da foto: (Reprodução)
“Com o tempo, uma imprensa cínica,
mercenária, demagógica e corrupta
formará um público tão vil como ela mesma.”
Joseph Pulitzer
Superabundam os crimes de imprensa das últimas duas décadas: a estreita ligação com as fábricas de dossiês dos grupos de Carlinhos Cachoeira e José Serra; o linchamento da reputação de Gabriel Chalita e Orlando Silva; a ampla repercussão dada às fantasiosas contribuições das Farcs e de Cuba ao PT – ‘dólares que teriam vindo em garrafas de rum’; a manipulação de notícias na campanha das eleições de 2010; a armação que conduziu ao arquivamento da operação Satiagraha; os vazamentos sistemáticos da operação Lava Jato; a capa ‘eles sabiam de tudo’ às vésperas da eleição de 2014 entre muitos outros.
Em comum todos esses casos têm o protagonismo de um meio de comunicação: a revista Veja. Dentre esses casos escabrosos narrados por Luís Nassif, no seu novo livro, Caso Veja: o naufrágio do jornalismo brasileiro, selecionamos três dos mais relevantes.
A capa panfleto distribuída nacionalmente às vésperas da eleição de 2014
Véspera do segundo turno da eleição presidencial, que aconteceria em 26 de outubro de 2016, na saída da estação Vila Madalena do metrô, pessoas distribuíam um panfleto eleitoral aparentemente bem elaborado. Mais de perto, a percepção de que era, na verdade, a capa da revista Veja da semana e estava sendo distribuída como panfleto político. “A publicação da revista veio acompanhada de um fortíssimo esquema de distribuição de fac-símiles da capa por todo o país”, reforça Nassif.
O jornal Valor Econômico, de quatro dias depois, ou seja, após a eleição, trouxe o desmentido do advogado de Youssef: “Isso é mentira. Desafio qualquer um a provar que houve oitiva da delação premiada na quarta-feira”.
Nassif conta que, nesse evento, Veja tinha partido “para sua última cartada, a decisiva, capaz de decidir uma eleição e, com o prestígio conquistado, garantir a sobrevivência editorial do Grupo”. E arremata: “através do conjunto de informações levantadas por diversos veículos, ficava claro que a revista tinha mentido, uma mentira que poderia ter modificado o resultado das eleições”.
Se não levou à vitória de Aécio Neves, do PSDB, a ampla divulgação da mentira retirou, possivelmente, alguns milhões de votos de Dilma e definiu o clima do início do seu segundo mandato, encurtando a distância para o golpe. Uma mentira que não tirou o grupo Abril da rota de falência que se aproximava. O balanço de 2017 já mostrava que, se a Editora Abril vendesse tudo o que possuía, faltariam R$ 716 milhões para pagar tudo o que devia. Nos anos seguintes o império dos Civita desabou.
A sucessão de tramoias que levou ao arquivamento da operação Satiagraha
O segundo caso, entre os mais marcantes narrados por Nassif, aborda a concertação para desabonar a operação da Polícia Federal que tinha o codinome de Satiagraha e envolvia Daniel Dantas, dono do banco Opportunity, implicado com inúmeras denúncias tanto no cursos nas privatizações quanto nas lutas pelo controle de empresas de telefonia.
A contracapa de Operação Banqueiro, de Rubens Valente, apresenta o livro como “A história de como o banqueiro Daniel Dantas foi preso e libertado acusando seus acusadores. Um acontecimento inusitado assombrou o Brasil em 2008: o poderoso e enigmático banqueiro Daniel Dantas foi preso pelo delegado federal Protógenes Queiroz, por ordem do juiz Fausto de Sanctis, e conduzido algemado para uma cela comum, acusado de vários crime. Mas logo foi libertado, por ordem do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. As provas da investigação foram anuladas. O delegado foi afastado de seu trabalho e se elegeu deputado. O juiz foi transferido para uma vara qualquer, sem brilho e poder. O que teria acontecido?”
Nassif conta que a estratégia de Dantas na Veja, contou, no princípio, com a transferência do jornalista Diogo Mainardi da função de colunista cultural para a de comentarista político. Na nova função teria “liberdade para ofender personalidades políticas e culturais”.
“Denunciei algumas manobras de Dantas e tornei-me alvo de ataques pesados de Mainardi em duas edições sucessivas da revista. Cada edição veio acompanhada de suplementos de oito páginas de publicidade das empresas Telemig Celular e Amazônia Celular [controladas por Daniel Dantas].” Sustenta Nassif que: “Começava ali uma parceria empresarial que perduraria por toda a operação Satiagraha – deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal e que terminou sem conclusão graças à notável influência de Dantas no poder judiciário.”
Dentre as provas anuladas estavam a gravação e o dinheiro pago por enviados de Dantas aos delegados para aliviarem o caso contra o banqueiro. A máquina publicitária sob disfarce de jornalismo montada pela parceria Dantas e Veja e a influência de Dantas no judiciário operaram o milagre: Dantas livrou-se e as vidas de Protógenes, Paulo Lacerda, De Sanctis, entre outros, viraram do avesso.
A armação contra Roseana Sarney
O terceiro evento que destacamos, dentre os vários trazidos pelo livro O Caso Veja, envolve Roseana Sarney, filha de José Sarney e então governadora do Maranhão. Ela despontava, como se pode ver pela capa de Veja de 14/11/2001 abaixo. como forte concorrente à presidência da República pelo PFL. Incensada pela mídia como corajosa, determinada e competente, Roseana sonhava ser a candidata da situação, contra Lula, na eleição de 2002 e liderava a corrida nas pesquisas de opinião. Até a batida da Polícia Federal na empresa de seu marido.
“Policiais federais montaram campana, identificaram o dia e a hora em que a Lunus – de Jorge Murad, marido de Roseana Sarney – receberia contribuições e montaram um flagrante acompanhado de uma equipe do Jornal Nacional”, revela Nassif. “Para melhorar a cena, arrumou-se o dinheiro em pacotes de grande visibilidade, facilitando o impacto televisivo”. Os sonhos de Roseana ruíram como mostra a capa de Veja 14/04/2002.
A fábrica de dossiês
A imprensa havia se transformado numa enorme máquina de assassinar reputações naquele início dos anos 2000 por conta, especialmente, de duas fábricas de dossiês que confluíam suas produções para a revista Veja, diz Nassif. “Em uma ponta, a organização criminosa de Carlinhos Cachoeira, na outra, um grupo político onde pontificava a figura do ex-candidato à presidência José Serra.”
A ilustração acima faz parte de uma matéria, e do livro, assinada por Nassif, no jornal GGN, em que une reportagens e fatos levantados por seu blog com informações postas à vista pelo livro Operação Banqueiro. Nassif termina a matéria descrevendo quatro episódios – os dois habeas corpus em favor de Daniel Dantas, o grampo sem áudio, o grampo no STF e a reunião com Nelson Jobim e Lula – que se constituíram “escândalos inéditos na história do Supremo, todos os quatro tendo como origem Gilmar Mendes”.
A imprensa na era da infâmia
O Caso Veja cumpre ao menos dois papeis de peso em qualquer tentativa de atingirmos algum tipo de pacto saudável para o Brasil. O primeiro é por a nu as mazelas dos nossos sistemas político e de justiça, em que falcatruas diversas são premiadas com impunidade e ganhos de toda ordem ao vencedor. Em segundo lugar, o livro mostra tudo aquilo que um jornalismo digno e sério não deve fazer. A imprensa não deveria poder tudo.
Nassif entende que “a partir de algum momento em 2005, a diversidade [no jornalismo] começou a desaparecer e todos os erros anteriores da mídia perderam expressão perto do esgoto jornalístico que passou a jorrar intermitentemente dos jornais e TVs”. “A imprensa brasileira entrava na era da infâmia”, arremata ele.
Luís Nassif
O Caso Veja: o naufrágio do jornalismo brasileiro
Kotter Editorial, 2021
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