Catracas

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Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor

 

– A gente vai?




A pergunta do menino atingiu o homem como um corte de adaga de gelo seco em algum lugar entre a boca do estômago e o meio de peito, um pouco à esquerda.

— Claro.

A resposta exprimia vontade, não certeza. Nenhuma certeza.

Fim do mês. O dia do pagamento ainda coisa distante – teria que esperar mais uma semana pelo menos. Uma pindaíba de dar dó (a dó que ninguém sentia por eles, a não ser eles próprios).

O homem precisava arranjar R$ 130,00 se quisesse levar o menino ao jogo desta tarde.

O dinheiro restante na casa estava em poder da mãe, dentro de um envelope que todos sabiam onde estava, mas do qual ninguém se atrevia a chegar perto. Era o dinheiro da comida, do gás, da conta da luz (atrasada) e da condução para o trabalho.

O menino ouviu a resposta e voltou para o quarto.

O homem pensou.

Poderia falar com o patrão, pedir um vale, mas logo desistiu da ideia. Simplesmente não conseguia imaginar aquele sujeito sovina, dono do mercadinho onde ele trabalhava havia dois anos, lhe dando um adiantamento.

Poderia falar com o vizinho que emprestava dinheiro para quem quer que aceitasse pagar os juros obscenos que ele cobrava. E se sua mulher descobrisse que ele havia pegado dinheiro com o agiota do bairro, o casamento sofreria sério abalo. Poderia até acabar. Ou no mínimo lhe render duas semanas dormindo no estropiado sofá da sala.

Por fim, pensou no irmão.

O problema é que já estava devendo para o irmão. O problema também era o fato de que o irmão poderia muito bem combinar uma coisa e se esquecer dela meia hora depois – meia hora regada à cachaça.

Resolveu ligar.

O telefone tocou várias vezes antes de o irmão atender. Estava acordando e, pelo jeito, em seu estado normal: enfrentando uma ressaca furiosa.

Explicou o caso. Sim, o irmão tinha R$ 130,00 para emprestar. Claro que ele imaginava o quanto sobrinho queria ir àquele jogo. Marcaram o encontro para dali a duas horas, no portão de acesso que usavam para entrar desde os tempos em que eles dois, os irmãos, eram adolescentes.

Na hora marcada, o homem e o menino estavam em frente ao portão. A hora chegou e o irmão não apareceu. O menino fingia que tudo ia dar certo e que dali a pouco estariam dentro do estádio.

A aflição do homem aumentava a cada minuto. O menino não olhava para o homem; concentrava-se em assistir os outros torcedores entrarem no estádio.

O homem percebeu que um dos porteiros, o mais velho, os observava.

Agora havia poucos torcedores no entorno do estádio. O jogo estava para começar. E o irmão não aparecia. O homem sabia: o irmão não apareceria. Pensou em ligar do celular, mas a irritação, a amargura e a certeza de que de nada adiantaria fazer aquilo o impediram.

O porteiro veterano continuava a olhar para eles e isso deixava o homem ainda mais exasperado. No peito do menino, a iminência da decepção se manifestava na forma de batidas aceleradas e vazias de esperança.

A torcida lá dentro. A festa. Era o time entrando em campo. O entorno do estádio praticamente deserto. E nada do irmão.

Agora lá dentro a primeira explosão da torcida. Gol? Quase gol?

Duas lágrimas invencíveis surgiam nos olhos do menino.

Ódio em estado bruto transbordava do peito do homem – ódio do irmão, ódio da vida.

Então ele viu o porteio coroa fazer um sinal. Depois o assistiu colocar a catraca numa posição neutra. E depois viu o porteiro se aproximar de um colega, cochichar alguma coisa e, na sequência, afastarem-se, ambos com as mãos no bolso das jaquetas pretas.

O homem pegou o menino pela mão e o arrastou.

O menino, tão surpreso quanto eufórico, enfim adentrou o território em que seu desejo mais profundo se realizava.

O homem olhava para o menino, e para nada mais; era a única forma possível de sufocar a imensa vergonha que sentia.

O barulho da batucada. Os gritos. Quando o menino e o homem conseguiram por fim direcionar seus olhares para o gamado um dos atacantes do time deles, o craque tatuado, ídolo maior do menino, estava na cara do gol, sozinho, cabeça erguida, apenas ele e o goleiro, e então ele fez o que tinha que fazer.

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