Cecy, o grande amor de Noel Rosa 71 anos depois

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Por Arcírio Gouvêa Neto, jornalista.

Texto extraído da sua seção Noel Rosa: O Poeta da Vila (Facebook)




Como prometemos, aí está o excepcional registro histórico feito com a bailarina do Cabaré Apolo, da Lapa, Juracy Corrêa de Moraes (Cecy), o grande amor da vida de Noel e que ganhou do Poeta da Vila dezenas de sambas, entre eles sua obra-prima (Último Desejo).

A entrevista com a professora aposentada, um “fiapinho de gente”, feita pelo cineasta Rodrigo Alzuguir, foi realizada em 2005, pouco antes da morte de Cecy, aos 90 anos. Nas fotos, temos Cecy no tempo dos amores com Noel e depois como professora de uma escola da Vila Kennedy, comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

NOSSO AMOR QUE EU NÃO ESQUEÇO… OU MEIO-DIA NO IRAJÁ

Como Owen Wilson em “Meia-Noite em Paris”, saltei do metrô na Estação do Irajá (subúrbio do Rio de Janeiro) num meio-dia de 2005 sentindo que um túnel do tempo se abria na minha frente. Meu destino não era uma festa animada por Cole Porter ao piano, como no filme de Woody Allen, mas a casa simplória de Juracy Corrêa de Moraes, a Cecy. Não tá ligando o nome à pessoa? Cecy: a “Dama do Cabaré”. O grande amor de Noel Rosa. A musa de “Último Desejo”, entre muitas outras jóias do poeta.

Vamos rebobinar a fita algumas semanas atrás. Andava eu naquele 2005 encafifado com suspeitas de que a amizade entre Wilson Baptista e Cecy (revelada por João Máximo e Carlos Didier na biografia de Noel) teria derivado para um “algo a mais”. Resolvi ligar pro Didier, e sua resposta me surpreendeu:

– Ué, pergunta pra ela. Vai lá: Vila Kennedy, rua Pretoria, nº 11.

Cogitar que Cecy – dançarina de cabaré que semeou amores na Lapa dos anos 1930 – podia estar viva em 2005 era quase incompreensível. Eu não podia compreendê-la zanzando por aí em pleno século XXI sem que isso fosse motivo para manchete em jornal ou entrevista no “Fantástico”. Como ninguém sabia disso?

Desliguei a mil, imaginando rodar um curta-metragem sobre ela. Já tinha título e tudo: “Nosso amor que eu não esqueço”. Seria rodado na Lapa, óbvio. Levaríamos Cecy para passear pelo cenário de seu amor com Noel, setenta anos depois. Convidaríamos Camila Pitanga, sua intérprete no cinema, para conhecê-la.

Bom, dali a alguns dias parti para a Vila Kennedy. Avenida Brasil. Paramos numa praça, eu e Ricardo, um amigo. Nos informamos sobre a rua Pretoria e descobrimos que ficava do outro lado da pista, no sentido de quem volta. A informação foi dada por traficas. Brabeira!

Rua Pretoria. Casas simples. A de número 11 – branca, uma porta, uma janela – estava vazia. Fomos a um vizinho. Cecy não morava lá fazia muitos anos. Antes de se mudar, tinha morado numa outra rua por ali. Um rapaz se ofereceu pra levar a gente lá. Entrou no carro e fomos.

Cecy era conhecida na Vila Kennedy como Professora Juracy. Os moradores falavam dela com respeito e carinho. Grande parte da molecada da região tinha sido alfabetizada por ela. Foi bonito descobrir que a “Dama do Cabaré” tinha se convertido na “Professorinha da Vila Kennedy”. Falou-se também no marido dela, seu Mário – ou Marinho -, e nos problemas que o casal enfrentou com enchentes. (Bastava uma chuva mais forte para inundar a Pretoria.)

No outro endereço, confirmaram que a Professora Juracy tinha saído da Vila Kennedy há alguns anos. Ninguém sabia pra onde. Alguém indicou que a gente tentasse se informar com uma D. Zezita.

Seguimos em frente, até uma praça grande, com comércio e casas. Chegamos até a casa de D. Zezita, senhora simpática, tipo nordestina. Entramos. A Professora Juracy, segundo ela, era viva, muito idosa, e alfabetizou seus três filhos Ronaldo, Rogério e Ricardo. Em 1966, Cecy já morava na Vila Kennedy com seu companheiro Marinho.

O problema de falar com ela era o marido, ciumento. Seu Mário não gostava que a mulher falasse do passado, de Lapa, boemia, Noel Rosa. “Uma vez, há muitos anos,” disse D. Zezita, “vieram fazer uma matéria sobre Noel com Cecy e ela teve que dar “um perdido” no marido, foi gravar escondido na praça.”

Um dos filhos veio conversar, disse que Cecy era uma segunda mãe para ele. A professora beneficiou muitas pessoas na Vila Kennedy. Possibilitou que tivessem outro tipo de educação e mais oportunidades na vida. D. Zezita prometeu entrar em contato com uma sobrinha de Cecy e depois falar com a gente.

A sobrinha se chamava Rosaly e, sina da família, também tinha um marido ciumento. Era filha de Jurema, uma prima (já falecida) de Cecy. D. Zezita me ligou, passou o telefone de Rosaly, recomendando que ligasse em determinada hora para que fosse Rosaly a atender o telefone. Assim fiz.

Rosaly contou que Cecy já não andava e falava com dificuldade. Morava com o marido numa casa em Irajá. Rua Miranda de Brito, 147. Seu Mário, confirmou a sobrinha, era muito ciumento. Vinte anos mais novo que Cecy. Rosaly ia lá uma vez por semana dar um banho caprichado na tia. Ficou de ver o que era possível. Vi meus planos de levar Cecy à Lapa “micarem”…

Alguns dias depois, combinamos que eu iria visitar Cecy na próxima ida de Rosaly. Fomos – eu e minha mulher Carol – de metrô. Gravador, câmera. Saltamos na estação do Irajá. Andamos uns quatro quarteirões, até chegar à rua de Cecy. Eu parecia descolado da realidade. Dali a pouco estaria cara a cara com a “Dama do Cabaré”.

Encontramos Rosaly na porta da casa. Casa de subúrbio. Rosaly era uma mulher tipo cabocla, de uns quarenta e tantos, miúda, cabelo preto abaixo do ombro preso num rabo, aparência humilde (mais do que eu imaginava pelas conversas por telefone). Cecy e seu Mário moravam na parte detrás da casa.

Fomos margeando a casa. Entramos por uma porta lateral. Uma sala estreita com dois sofás, um de frente para o outro, e uma mesa redonda de jantar no canto. Tudo muito apertado. Uma porta ao fundo dava para a cozinha. Outra, ao lado, para um quarto de dormir. Só. Num dos sofás, uma mulata novinha observava. Seu Mário de pé ao lado da mesa. No sofá da direita, deitada, de camisola, Cecy.

Um fiapinho de gente. A camisola de tecido branco bem fino, puído, meio aberta no peito. O rosto, de traços delicados, encovado. Os cabelos brancos, ralos, penteados pra trás. A cabeça apoiada numa almofada. Tossia.

A fisionomia (apesar de tudo elegante) lembrava minha avó Nymia. Pensei na música de Wilson Baptista: “Já foi a Flor da Lapa / A rainha da beleza / Os homens brindavam seu corpo bebendo champanhe / Hoje acaba o cabaré / Ela não tem quem lhe acompanhe”…

Seu Mário era um coroa enérgico, atarracado, forte, branco, de bigode. Sem camisa. Bermuda e chinelo. Um jeito enfático de falar. Demos um beijo em Cecy. Cecy segurou a mão de Carol e não largou mais. Ficaram de mãos dadas o tempo todo. Eu custava a crer que a gente estivesse mesmo ali.

Numa das paredes, colorizada, aquela foto de Cecy que saiu em preto e branco no livro do Noel. Seu Mário, papo vai, papo vem, mostrou a única foto que tinha de Cecy, além dessa na parede. Uma foto pequena, com amigos, na casa da rua Pretoria. Cecy estranha, com uma peruca loura. Matrona, sem cintura, braços finos. No geral, não era bonita, apesar dos traços suaves do rosto.

Seu Mário contou as suas aventuras com Cecy e eu fiz perguntas a ela, já usando o gravador. Ela respondia com dificuldade, sussurrando, com poucas palavras. Abriu um sorriso quando mencionei Custódio Mesquita. Quando perguntei sobre Wilson Baptista, sorriu novamente e disse que ele era um “mulato disfarçado”, porque penteava o cabelo para trás com gel. O papo está gravado. Um dia transcrevo e divulgo.

Forcei a barra fazendo a entrevista, mas não tive vontade de tirar fotos. Naquele estado, tenho certeza de que ela não gostaria de ser fotografada. Agradecemos e fomos embora. Na saída, Rosaly me falou de uma entrevista que fizeram com Cecy quando ela ainda estava bem, e que poderia me dar uma cópia.

Alguns dias depois, chegou às minhas mãos uma fita de vídeo, com uma entrevista gravada de maneira amadora por Marco Santos e Mauro Silveira – nomes que constam na etiqueta da fita e que não consegui localizar até hoje. Cecy aparece falando timidamente sobre Noel, Lapa etc. Deve ser um dos poucos registros dela.

Meses depois liguei para Rosaly e ela disse que seu Mário e Cecy haviam se mudado (para algum lugar no Estado do Rio, não me lembro ao certo) e que Cecy estava um pouco melhor. Num outro telefonema, já no início de 2006, Rosaly me disse que Cecy havia falecido.

Fiquei com pena de não ter chegado alguns anos antes, a tempo de fazer um registro bacana dessa figura histórica que foi Cecy. Mas valeu a tentativa. Foi incrível passar uma tarde no Irajá ao lado da Dama do Cabaré – mesmo que no apagar das luzes!

* Nota do Administrador, Arcírio Gouvêa Neto, do grupo do Facebook Noel Rosa: O Poeta da Vila

Pessoal, é necessário explicar que Cecy era muito jovem, 16 pra 17 anos, vinda do interior do Estado do Rio – Campo dos Goytacazes – e não tinha a exata noção de quem era Noel Rosa, da sua importância na música popular brasileira. Nem Aracy e nem Almirante tinham, como eles mesmos declararam em entrevistas. Só viriam a ter essa consciência muitos anos após a morte de Noel, lá pelos anos 50.

Por isso, Almirante lançou o programa “No Tempo de Noel Rosa”, na Rádio Tupi de São Paulo; e Aracy gravou um LP com músicas inéditas de Noel, que se transformou em um grande sucesso de crítica e vendagem, resgatando daí em diante, definitivamente, a obra noelina, para as gerações posteriores.

Devemos, portanto, a fixação de Noel no panteão de nossos gênios a essas duas grandes estrelas de nosso cancioneiro popular. O mesmo deve ter acontecido com Cecy, que só foi entender o significado do homem que tanto lhe amou décadas depois de sua morte.

Noel era muito grande para que fosse compreendido em seu tempo. O genial poeta e compositor Orestes Barbosa, também parceiro de Noel, quando começavam a zombar de Noel numa roda de botequim, tratando-o de uma forma pequena, costumava dizer: “Parem de aborrecer Noel, vocês estão diante de um dos maiores nomes do nosso universo musical”.

abaixo, matéria anterior de Arcírio Gouvêa Neto, na qual ele promete o texto acima.

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