Por Ulisseds Capozzoli, jornalista
Em 26 de julho, uma manhã fria e cinzenta aqui no Sul, faz 100 anos que nasceu em Pombal, primeiro núcleo de ocupação no sertão da Paraíba, o menino que seria batizado com o nome de Celso Monteiro Furtado, o economista Celso Furtado, um dos grandes intelectuais brasileiros do século passado.
Entrevistei o professor Celso Furtado em um seminário de economia realizado em um hotel às margens da BR-381, a Fernão Dias, em Atibaia, quando ele retornou do exílio a que fora confinado pela mente estreita, estéril e repressora dos generais de 1964. ]
Meu pai, um alfaiate anarquista, que as pessoas confundiam com comunista numa pequena cidade mineira, era admirador dele. Essa, uma das dívidas intelectuais que tenho com meu pai. Àquela época eu ainda acreditava que a economia pudesse mudar a conjuntura social no Brasil e trabalhava nessa editoria da Folha de S. Paulo, além de estudar na FEA-USP.
Foi com especial interesse que o entrevistei, numa conversa longa, adorável, pausada por citações e explicações claras sobre o que estava em pauta: a velha e execrável situação político-econômica nacional.
Celso Furtado tinha duas características: seu discurso calmo, transparente, observando os olhos do interlocutor, como se acompanhasse o fluxo de seu pensamento e devesse detalhar algo não suficientemente claro.
Além disso, tinha o que nenhum outro economista brasileiro teve ou tem: formação intelectual ampla, capaz de fazer interagir as mais diferentes áreas do conhecimento, resultando numa percepção de realidade proposta pela inteligência e sofisticação do geógrafo, explorador e naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), a consciência mais lúcida dos últimos 250 anos.
Além do filósofo e antropólogo francês Edgar Morin e sua teoria da complexidade. Morin nasceu num 8 de julho, no ano seguinte a Celso Furtado, e está no seu 99º ano de vida. Também fará falta imensa, quando atravessar para a outra margem do rio.
Celso Furtado teve a visão e interpretação da realidade nacional que nenhum outro foi capaz de enxergar e, perto dele, um bufão grosseiro e estúpido como Paulo Guedes, seria um rinoceronte assustado numa joalheria. Impossível confundir os modos refinados de Celso Furtado à crítica grosseira, vulgar e indevida que Guedes demonstrou em relação, por exemplo, à primeira dama francesa, Brigitte Marie-Claude Macron.
E essa certamente é uma metáfora capaz de mensurar o quanto retrocedemos, intelectual e pessoalmente, em curto espaço de tempo. A Folha de S. Paulo, em que gastei alguns anos da vida, publica hoje um texto interessante de Eduardo Cucolo sobre o centenário de Celso Furtado, destacando a visão que ele teve do Estado como indutor do desenvolvimento social, algo que Guedes e seu chefe, um paraquedista, são incapazes de conceber, quanto mais de propor.
Fico pensando, mergulhado em certa angústia nos últimos dias, se tudo isso se foi para não mais voltar. Se homens como Celso Furtado e muitos outros se perderam para sempre na curta e superficial memória nacional. Memória crítica, porque enquanto repetição, essa, sim, substituiu o exercício da inteligência há muito tempo.
Celso Furtado, registra Cucolo, participou da criação da Sudene, concebida como ação para mudar a realidade político-social do Nordeste, já há um bom tempo, sob controle coronelista/clientelista, muleta para o patriarcalismo mais arcaico que viceja por aqui.
O texto lembra ainda que Celso Furtado costuma ser associado ao pensamento de “esquerda, apesar de filiado ao PMDB na década de 1980”. Aqui, dois pontos: primeiro que àquela época, Ulysses Guimarães estava vivo, era certamente o maior líder político nacional e tinha ideias que, de muitas maneiras, iam na mesma direção de Furtado.
O segundo ponto: não é obrigatório ser de esquerda para se dar conta de aberrações sociais que devem ser transformadas em nome do que hoje parece utopia: a dignidade humana. O fato é que Furtado não amarrava sua montaria no mesmo poste utilizado por gente como Roberto Campos, o “Bob Fields”, ou o ortodoxo servidor dos generais, cultuadíssimo pela mídia pela paixão por óperas, Mário Henrique Simonsen. Ou mesmo o camaleão manipulador de estatísticas, o que incluiu o teor de gordura do leite destinado aos miseráveis, o “leite C”, o cínico Delfim Netto, que ainda participa do interminável pôquer político de tradição senhorial.
Se “o passado condena”, como diz a frase popular, ele também é capaz de redimir. E isso nos levaria de volta a uma senda em que certa consciência crítica humanista e humanitária nos devolveria a uma rota civilizada/civilizatória. Gostaria imensamente de acreditar nessa possibilidade. Mas, neste momento, creio que, somos todos, profundamente céticos.
Foto: Sertão de Pombal, onde nasceu Celso Furtado: a miséria perpetuada como um castigo imerecido.
Foto: Semanaon.