Cenas de um platô

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Por Ulisses Capozzoli, Facebook –

Um país atrasado é um país de mentalidade atrasada.




A frase, aparentemente óbvia, é do físico e filósofo da ciência Mario Bunge, canadense de origem argentina. Uma mente inquieta, perscrutadora, capaz de decifrar o que, para a maioria, não passa de garatujas sem sentido.

Fiquei, como Henry David Toureau (1817-1862) isolado na natureza, num pequeno platô de onde pode-se observar a elevação mais distante na linha do horizonte, a aproximadamente 80 km em linha reta. Para alguém com a minha estatura, que não é grande coisa, a linha do horizonte, vista da praia para o mar, fica em torno de 4,7 km, condicionada pela curvatura do corpo da Terra (não sou adepto da Terra plana, claro).

Do platô em que me instalei, no entanto, até o pico mais elevado na linha do horizonte, essa distância é ampliada por quase 20 vezes. Fascinante essa experiência que não relato aqui por esnobismo. Sou um observador interessado em partilhar experiências com outros observadores intrigados com as mesmas coisas que, às vezes, me fazem sentir fora do mundo. Livre de julgamentos sumários, juízos idiotas e prepotentes de gente que, de alguma maneira, se acredita eterna, ainda que isso beire a mais risível estupidez.

Trabalhei duro nos dez dias em que me refugiei no platô e apesar da proteção de grossas luvas, minhas mãos têm um pequeno conjunto de farpas cravadas por uma diversidade de madeiras trabalhadas com serras, serrotes, lixadeiras, parafusos e óleo de linhaça. Meu pequeno observatório no platô é um paraíso, para onde estou tratando de atrair um pequeno número de amigos com quem possa dividir tanto a terra quanto o céu.

Sem receio de processos por invasão de propriedade privada. Observamos das alturas e, como na Idade Média, desfrutamos do conceito que vai do céu ao inferno, se é que me faço entender. Fiquei livre de preocupações? Claro que não. Apesar de estar trabalhando na natureza, havia o trabalho na cidade, frente à tela branca do computador, esperando para se preenchida com os sucessivos toques mágicos que criam um texto inteiro. E, este ano, felizmente, tenho muitos textos a serem pacientemente tecidos, como se trabalhasse com um tear e não com um computador.

O platô exibe imagens do mundo fora do alcance de quem não seja dividido ao meio como eu: metade humano e metade animal. Preciso tanto da literatura e da ciência quanto da flauta do vento cantando entre as árvores, zunindo com as tempestades, como a que caiu no final da tarde de ontem, com rajadas de granizo. A água dura como pedra, coisa que só a água pode fazer por um processo chamado de “ponte do hidrogênio”.

Sem essa magia do hidrogênio, saibam que não estaríamos aqui. Do platô, apesar de não ter propositadamente notícias do mundo, sabia, claro, do julgamento do Lula e não me surpreendi com o resultado nem com o que pude ler no jornal no café da manhã de hoje, já na cidade grande. A justiça, no Brasil, é tão previsível quando dizer que o Sol nascerá amanhã. A menos que não haja um amanhã, o que é pouco provável, mas não de todo impossível. Um dia não haverá um amanhã.

Leio gente elogiando a meticulosidade dos julgadores do ex-presidente. Não creio na ideia do Paraíso, onde almas justas e inatacáveis, deslocam-se com asas leves de beija-flor. Mas a condenação de Lula é simplesmente ridícula e deve merecer a mais profunda repulsa de quem tem uma noção de civilidade, equilíbrio e justiça equânime.

Se Lula é o ladrão que dizem, e que deve sofrer o castigo que lhe atribuem, o que fazer quanto à malta que se apossou do poder e trafica dinheiro escuso em malas lotadas, fotografadas por agentes policiais? Que negocia postos com mercenários, déspotas e salteadores com a liberdade de um senhor medieval? As acusações contra, por exemplo, o tucano José Serra, prescreveram? Como assim, prescreveram? Que indecência imunda e repugnante é essa, de cortar a cabeça de uns e tirar a corda do pescoço de outros? Justamente aqueles que sempre usurparam do poder?

Do meu refúgio no platô, mais de uma vez, por elaborações do inconsciente, preparando o retorno para a cidade grande, me veio o sorriso irônico de Machado de Assis, enquanto a princesa assinava a carta que formalmente punha fim à escravidão, então, a ultima de todo o Ocidente.

Machado de Assis sabia das coisas.

De muitas coisas que ainda não aprendi.

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