Quase oito anos após o crime, Tribunal do Júri inicia sessão para o julgamento dos quatro primeiros acusados
Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Protesto na porta de fórum em Fortaleza pede justiça para vítimas da Chacina do Curió: 34 PMs serão julgados pelo assassinato de 11 jovens (Foto: Rannjon Mikael / TJ-CE)
Há quase oito anos, a vida de 11 jovens foi interrompida por policiais militares no bairro que leva o nome de Curió, na Grande Messejana, periferia do Ceará, onde quis o destino igualar, infelizmente, a vida daqueles que moram ali com a expectativa do pássaro que dá nome à região – um curió pode viver até 30 anos se em cativeiro e de 8 a 10 anos na vida selvagem. A maioria das vítimas tinha entre 17 a 19 anos.
Entre 11 e 12 de novembro de 2015, 45 PMs – em serviço e de folga – se reuniram no local para vingar a morte do soldado PM Valtemberg Chaves, segundo a investigação da Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD). O massacre durou quatro horas e envolveu a prática de tortura e outras violações de direitos humanos.
À época, o Ministério Público do Ceará (MPCE) ofereceu denúncia contra 45 policiais pela participação nos assassinatos: a Justiça transformou 34 PMs em réus, em processo desmembrado em três ações penais, sendo duas com 18 réus cada e a terceira, com oito. Só agora 20 dos 34 réus serão julgados pelo Tribunal do Júri – os outros responderão na Auditoria Militar.
Na manhã desta terça-feira (20/06), foi iniciado o julgamento dos quatro primeiros réus (os PMs Antônio José de Abreu Vidal Filho, Ideraldo Amâncio, Marcus Vinícius Sousa da Costa e Wellington Veras Chagas). Estão previstos 24 depoimentos, sendo sete de vítimas sobreviventes, 13 de testemunhas, além do interrogatório dos réus. O julgamento dos outros réus desta primeira ação penal prosseguirá em agosto e setembro.
O julgamento da Chacina do Curió tem número recorde de policiais militares no banco dos réus, desde o massacre de Eldorado dos Carajás (em 2006, no Pará, com 149 acusados). É considerado, pelo próprio Judiciário estadual como “o maior julgamento nos 150 anos da Justiça cearense” – são 13 mil páginas de processo. O TJ-CE preparou um site com informações, fotos e vídeos dos julgamentos, onde também será possível acompanhar ao vivo o andamento das sessões.
Reunidas em movimentos para mobilizar a sociedade por justiça, as mães, outros familiares e vítimas sobreviventes atuam juntos há quase oito anos para tentar evitar que violência semelhante aconteça com as próximas gerações. Enlutados e muitas vezes sob perigo, não deixam que as trajetórias de Álef Sousa Cavalcante (17 anos); Antônio Alisson Inácio Cardoso, (17 anos); Francisco Enildo Pereira Chagas (41 anos); Jandson Alexandre de Sousa (19 anos); Jardel Lima dos Santos (17 anos); Marcelo da Silva Mendes (17 anos); Marcelo da Silva Pereira (17 anos); Patrício João Pinho Leite (17 anos); Pedro Alcântara Barroso (18 anos); Renayson Girão da Silva (17 anos); e Valmir Ferreira da Conceição (37 anos) sejam esquecidas.
O caso confirma a trajetória do estado no aumento da letalidade policial. Entre agosto de 2021 e julho de 2022, a Rede de Observatórios da Segurança registrou 1238 eventos violentos no Ceará. Do total, mais da metade tinha relação com ações da Polícia. Neste mesmo período, a entidade também identificou a ocorrência de 21 chacinas cometidas por criminosos, policiais, grupos de extermínio ou milícias no Ceará – no Rio de Janeiro, foram 40; na Bahia, 22. O estado do Ceará apresentou o maior número de registros de corrupção policial monitorados na Região Nordeste, com oito ocorrências.
Nos últimos cinco anos, 194 policiais viraram réus por tortura no Brasil. O Ceará lidera a lista, com 37 policiais como alvo de ações judiciais. Os dados são de levantamento do jornal O Globo em diários dos Tribunais de Justiça de todo o país, em que policiais civis, penais e militares respondem pelo crime. Um balanço registra uma média de um agente processado por tortura a cada dez dias, desde 2017. Do total, 134 réus são da Polícia Militar, 336 são da Polícia Civil e 24 da Polícia Penal. Dezoito foram condenados e os demais ainda são réus.
Na véspera do início do julgamento, o governador do Ceará, Elmano de Freitas, usou as redes sociais para abordar sobre o caso. “O governador do Estado do Ceará manifesta sua absoluta solidariedade com os familiares e amigos das vítimas dos homicídios ocorridos no dia 12 de novembro de 2015, quando 11 pessoas dos bairros do Curió, São Miguel, Lagoa Redonda e Messejana foram brutalmente assassinadas. Afinal, foi uma tragédia para toda a sociedade”, disse.
Em abril, o governador já havia acenado aos familiares, quando, pela primeira vez desde a Chacina do Curió, eles foram recebidos por um chefe do executivo do estado. Na reunião, estavam presentes também representantes de grupos de defesa dos direitos Humanos, do Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente) e da Anistia Internacional Brasil.
Para Edna de Souza, mãe de uma das vítimas, o sentimento é de ansiedade. “Foram quase oito anos de busca, de luta, muito choro debaixo do chuveiro, muitas noites não dormidas. Chegar ao júri é ter confiança, eu estou confiante. Precisamos lutar para que não haja mais mortes na periferia. É fazer Justiça e evitar novas mortes”, afirmou em entrevista ao Diário do Nordeste. “É o maior julgamento da história do Ceará, principalmente porque traz como réus agentes da Segurança. Sempre fomos para a luta, nunca tivemos medo. A gente batalhou pra isso, pra esse momento. Essa segurança vem dos nossos filhos; é por eles, por causa deles, que estamos nessa luta, que queremos o direito da periferia viver”, acrescentou.