Por Joana Suarez, com fotos de Flávio Tavares, compartilhado de Projeto Colabora –
Sangue de líderes assassinados enquanto dormiam ajudou os indígenas a recuperarem parte de seu território
São João das Missões (MG) – Os conflitos entre os Xakriabá e fazendeiros no Norte de Minas Gerais se arrastam há muitos anos. O ápice ocorreu em 12 fevereiro de 1987, com uma chacina que marcou a história deles – a data é sempre lembrada com cerimônia nas aldeias. Os indígenas Rosalino Gomes de Oliveira, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana foram assassinados enquanto dormiam em casa.
Durante a madrugada, um grupo de 15 grileiros invadiu a aldeia Sapé e iniciou um tiroteio. A mulher do cacique Rosalino, Anísia Nunes, grávida de dois meses, foi ferida com um tiro no braço. O filho José Nunes de Oliveira, atual prefeito de São João das Missões, na época tinha 10 anos e foi obrigado a arrastar o corpo do pai para fora da casa pois deveria provar aos pistoleiros que ele estava morto.
Quem conta essa história é o outro filho de Rosalino, sobrevivente da chacina, o atual cacique Domingos de Oliveira, que tinha 12 anos à época, e hoje tem 45 anos. “Meu pai falava que talvez ele não ia conseguir chegar até o fim, mas ia lutar para o nosso povo ficar livre”, narra Domingos do lugar onde seu pai foi sepultado, próximo de casa, como manda a tradição Xakriabá.
Nas portas de várias casas, vemos as cruzes dos parentes que foram enterrados na reserva – é um costume, uma forma de mantê-los na terra Xakriabá.
O crime, considerado genocídio, foi uma “resposta” dos fazendeiros aos Xakriabá quando estes decidiram ocupar as terras já demarcadas para os indígenas. A demarcação havia sido feita em 1979, mas como não houve homologação, os posseiros continuaram por lá durante sete anos. Os órgãos brasileiros se mantinham alheios enquanto os ânimos se acirravam.
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Somente após a chacina, a Fundação Nacional do Índio (Funai) homologou a área e mais de 90 famílias não-indígenas foram retiradas das terras. Essa foi a primeira demarcação, que devolveu apenas 30% do território tradicional Xakriabá – 46 mil hectares. “Éramos alvos de tudo e de todos, até do poder público. O sangue de Rosalino e dos demais foi o que nos deu parte do território de volta”, afirmou o cacique Domingos, recordando a perseguição intensa que seu povo sofria nos anos 80, com o assassinato de vários indígenas.
Em 2003, foi reconhecida uma outra área, registrada como Terra Indígena Xakriabá de Rancharia, com cerca de 8.000 hectares, totalizando os 54 mil hectares que eles possuem hoje.
Reparação no papel
Até a Constituição de 1988, as terras indígenas eram demarcadas de maneira que fossem insuficientes para a subsistência: era de propósito, para que o índio tivesse que sair de lá para trabalhar nas fazendas. “O objetivo do Estado era a integração desses índios à população nacional, para que eles virassem ‘brasileiros’ “, explica o antropólogo Pedro Rocha, professor do curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG.
A partir do artigo 231 da Constituição, o Estado brasileiro abandona essa ideia e os índios passam a ter reconhecido o direito de viver segundo seus usos, costumes e tradições nas terras que eles sempre habitaram. “Passamos a ter toda uma legislação que determina como as demarcações devem ser feitas. Ao contrário do que era feito anteriormente, agora as terras indígenas devem conter todos os elementos necessários para sua reprodução física e cultural”, explicou Rocha, exemplificando que um rio importante não poderia ficar de fora da demarcação.
Mas o que está na Constituição nem sempre é garantido pelos governos. Além da morosidade dos órgãos oficiais, ainda há uma crescente judicialização dos processos de demarcação de terras. Nesse contexto, os índios enfrentam uma disputa desigual com o agronegócio e os latifundiários. Na região de São João das Missões, há também pequenos fazendeiros que ainda aguardam indenizações, sem a qual não aceitam sair do local.
Indígenas na prefeitura
O povo Xakriabá é conhecido pela forma como eles se organizam internamente. José Nunes de Oliveira foi o primeiro prefeito Xakriabá de São João das Missões – o segundo indígena do país a ocupar um cargo executivo municipal. Eles já estão no quarto mandato indígena consecutivo na cidade – dois mandatos de Oliveira, um de Marcelo Pereira, e novamente Oliveira. Inicialmente, foi uma forma de não ficarem dependentes de políticos que só apareciam na reserva em período eleitoral.
Mas a gestão local não consegue suprir as demandas da população com as arrecadações baixas do município. O Produto Interno Bruto (PIB) Per Capita do Brasil, em 2018, foi de R$ 32 mil; em São João das Missões, foi cinco vezes menos: R$ 5 mil. No ano passado, o município teve uma receita de R$ 24 milhões e despesa de R$ 28 milhões, de acordo com o portal Minas Transparente do Tribunal de Contas de Minas. Outra questão são os conflitos políticos internos que, conforme relatos dos eleitores, se intensificaram nos últimos anos.
Fora do ambiente político e assistencial, existem algumas iniciativas com as associações indígenas dentro da reserva para fortalecimento cultural, ambiental e social, mas demanda um esforço coletivo e contínuo. São projetos como a casa de cultura, mapeamento e recuperação de nascentes, banco de sementes, valorização de plantas medicinais e conhecimentos tradicionais, casa de farinha e roças comunitárias.
A Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais é um dos espaços de construção conjunta, que promove a integração entre os indígenas Xakriabá e Tuxás, comunidades quilombolas, geraizeiras, vazanteiras, veredeiras, catingueiras e apanhadores de flores. O Centro de Agricultura Alternativa (CAA) é outro parceiro importante.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), ainda que com poucas condições de investimento em tecnologia, os Xakriabá estão implantando projetos de agricultura irrigada, financiados pelo órgão e pela Fundação Banco do Brasil.