Por João Feres Jr., para o Jornal GGN –
O affair Charlie Hebdo já produziu em menos de uma semana uma avalanche de textos, artigos e posts. Há muito tempo um caso específico não suscitava tanto debate no exterior e também no Brasil. Para ser mais preciso, 11 de setembro, que seria um competidor mais do que a altura, ocorreu quando a internet ainda era mais tíbia e não havia redes sociais. Estamos perante o affair Dreyfus do século XXI, com todas as camadas de ironia que tal comparação enseja.
Milhões marcharam em Paris sob o lema “Je suis Charlie”, liderados por Hollande, Merkel, Benjamin Netanyahu e Mahmud Abbas, com o apoio dos Estados Unidos. A grande mídia brasileira aderiu com peso ao slogan por meio de editoriais, manchetes e artigos em defesa da liberdade irrestrita de expressão. Augusto Nunes, colaborador da Veja e apresentador do programa Roda Viva da TV Cultura, deu o tom nas páginas da revista na web: “foi o mais selvagem ataque à liberdade de expressão desde a invenção da imprensa”. Nunes ainda escreve: “foi a prova definitiva de que os guerreiros de Maomé decidiram revogar a bala tanto fronteiras geográficas quanto limites impostos por leis e valores que escavaram um portentoso abismo entre a civilização e o primitivismo”. A disposição para ler o problema pela ótica doclash of civilizations está clara no trecho, mas ao invés de direcionar suas baterias contra os muçulmanos, como seria de se esperar dos “intelectuais” que enveredam por essas sendas, o texto de Nunes se volta para o consumo interno, o que não é de todo surpreendente. O trecho é digno de ser reproduzido ipsis literis:
“os jornalistas brasileiros a serviço do lulopetismo são os únicos que lutam pelo extermínio da liberdade de imprensa e pela implantação da censura, escondida sob codinomes bisonhos como “controle social da mídia”, “regulação dos meios de comunicação” ou “democratização da mídia”. Seja qual for o disfarce, o que esses incapazes capazes de tudo buscam é algum atalho que encurte a distância que os separa do poder perpétuo e absoluto”.
Aos poucos o affair Charlie vai entrando num padrão de consumo tupiniquim que se assemelha muito ao de um outro affair, ou melhor, caso nacional: a controvérsia pública acerca do racismo contido no livro Caçadas de Pedrinho de Monteiro Lobato. A decisão de apontar para o racismo do livro foi lida por muitos articulistas da grande mídia como tentativa do PT de controlar a liberdade de expressão, submetendo a arte do autor paulista e seu público infantil à ditadura do politicamente correto (Fiuza, 2/4/2011; Editorial, 5/4/2011, “De olhos bem fechados”, 11/11/2010).[1]
Pois bem, agora utilizam a oportunidade do affair Charlie para mais uma vez afirmarem o direito à liberdade irrestrita de expressão. Mas será que a expressão deve mesmo ser inteiramente desregulada, ou seja, não sofrer qualquer sanção pública? A resposta é não! As razões para essa negação são várias e é importante conhecê-las.
Com o perdão do empréstimo, vamos começar por adotar um tom levemente socrático. Tomemos a liberdade de ir e vir, outro fundamento do sistema de direitos básicos do liberalismo. O direito de mover seu corpo para os lugares onde deseja talvez seja ainda mais básico do que aquele que permite a uma pessoa dizer o que quer. Mas a questão não reside na competição pela prioridade aqui, pois ambos parecem ser suficientemente fundamentais. É razoavelmente óbvio constatar que o direito de ir e vir é limitado por uma série de barreiras impostas pela condição coletiva da vida humana. Não podemos nos deslocar para um lugar já ocupado por outra pessoa; não temos acesso livre à propriedade privada de outras pessoas; não podemos nos deslocar no espaço público para lugares que estão temporariamente ou permanentemente ocupados por outras funções públicas, como um palanque onde discursam autoridades, a pista de um aeroporto, uma base militar, etc. Não podemos sequer ter acesso livre a espaços administrativos de repartições públicas, isso para não falar nos espaços administrativos de empresas privadas. A todas essas limitações razoavelmente impostas some-se a abissal desigualdade no acesso a esse direito determinada pela desigualdade econômica entre nós, humanos: quem tem grana vai a Roma, quem não tem…
Assim, notamos que um direito tão fundamental à estrutura moral e institucional do liberalismo é de fato sujeito a um sem número de condicionamentos. Ora, por que seria o direito à expressão inteiramente destituído deles? A resposta é simples. Ele só o é na parolagem dos menos sábios ou daqueles que tem interesses embutidos nessa mistificação. Quais seriam então os limites à liberdade de expressão?
Não pretendo ser exaustivo aqui, mas me parece oportuno apontar para alguns fatos que são inteiramente pertinentes ao affair Charlie e também ao caso Caçadas de Pedrinho. A liberdade de expressão se estende à incitação de crimes? Do ponto de vista puramente moral, a resposta mais indicada me parece ser plenamente negativa. Mas o que nos interessa aqui não é o plano puramente abstrato da moralidade universal, mas como princípios morais são interpretados por comunidades concretas, como França e Brasil. As charges do Charlie Hebdo eram claramente racistas, elas atacavam muçulmanos, fustigavam cristãos com menor furor e poupavam judeus, como bem descreveu Tariq Ali em artigo recente. O jornal chegou a demitir um colaborador acusado de antissemitismo em 2009, mas continuou a publicar charges extremamente ofensivas a árabes e muçulmanos, isso em um país onde a islamofobia é problema social de conhecimento público. De maneira similar, o Conselho de Estado da França proibiu o comediante Dieudonné M’bala de se apresentar em público por propalar ideias antissemitas como a sátira do holocausto, mas nunca tomou qualquer atitude frente as charges do Charlie Hebdo. No Brasil, país onde o racismo é crime, o texto de Lobato, abertamente racista, também incita a perpetuação de práticas criminosas. O delito torna-se ainda mais hediondo se levarmos em conta que o texto é usado na educação de crianças do Ensino Fundamental I (de 1º a 5º anos).
Se a França não reconhece o racismo das charges do Hebdo, isso é problema dos franceses, um povo que tem manifestado extrema dificuldade de lidar com a diferença e com a decadência de sua influência cultural no mundo. Infelizmente, com a crise econômica que assola a Europa desde 2008, essa reação chauvinista só tende a piorar. No Brasil, pelo contrário, estamos encontrando maneiras de lidar com o ocultamento histórico do racismo, finalmente proporcionando aos negros, depois de séculos de pura opressão, oportunidades que nunca tiveram em nosso país. A grande mídia brasileira foi sistematicamente contrária à criação de cotas raciais, como mostra estudo que coordenei, foi também contrária ao banimento do racismo na educação infantil e agora se volta em defesa do racismo praticado pelo Charlie Hebdo em nome da liberdade de expressão. A resposta a essa demanda deve ser peremptoriamente negativa: não, a liberdade de expressão não é irrestrita. Ela não pode permitir a incitação ao crime.
Tem mais, essa resposta, dada por nós no plano moral, já foi referendada no plano legal pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Em março de 2000, o Excelso Pretório condenou o proprietário da Editora Revisão, Siegfried Ellwanger, a dois anos de reclusão por crime de incitação ao racismo. Autor de “Holocausto: Judeu ou Alemão -Nos Bastidores da Mentira do Século”, Ellwanger negava a existência de campos de concentração e a morte de 6 milhões de judeus na 2ª Guerra Mundial. O texto da decisão é explícito “A liberdade de expressão é relativa e não pode abrigar manifestações de conteúdo imoral. Deve respeitar os limites morais e jurídicos”. Ademais, os ministros do STF responderam à tentativa dos advogados do réu de argumentar que “judeu não é raça” argumentando que “qualquer atentado à dignidade humana desse tipo deve ser enquadrado no crime de racismo”. Mutatis mutandi, tal argumento se encaixa como uma luva para responder àqueles que dizem que a discriminação contra muçulmanos, mesmo quando eles são retratados com roupas tradicionais, narizes grandes e aduncos, barbas mal ajambradas e longas, e portando armas de grosso calibre, como nas charges do Charlie Hebdo, não é racismo. É racismo sim, e se isso fosse feito em solo brasileiro mereceria a mesma sentença recebida por Ellwanger. Mas a França não é o Brasil e muçulmanos franceses não são judeus franceses ou brasileiros…, mas são seres humanos tanto quanto eles, quero crer eu. Agora só falta convencer o povo francês, a grande mídia brasileira e seus adeptos.
João Feres Júnior é Cientista Político – IESP-UERJ
“De olhos bem fechados”. (2010), Jornal do Commercio, 11 de novembro.
FERES JUNIOR, João; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes and EISENBERG, Zena Winona. Monteiro Lobato e o politicamente correto. Dados [online]. 2013, vol.56, n.1 [cited 2015-01-13], pp. 69-108.
FIUZA, Guilherme. (2011), “Bolsonaro e o Fuzilamento da Direita”. Época, 2 de abril.