Chico Buarque e os seus contos tirados dos cantos

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Além do Fluminense e do Tupynambás de Juiz de Fora, Chico Buarque tem outras paixões confessadas para poucos. Raduan Nassar e Rubem Fonseca, entre elas. Mestres na arte de dizer muito com poucas palavras. Raduan escreve com uma navalha; Rubem com uma esgrima. Chico, com as palavras, fere e cuida, rasga e costura. É algoz e cirurgião ao expor as vísceras que revela, disseca, remenda e cauteriza.

João Tavares, jornalista




Mas Chico é um “traidor”. O violão ficou guardado e o criador rompeu a lógica livro/música/show e emplacou dois livros seguidos. Depois de ‘Essa Gente’, embalado pelo Prêmio Camões, ele nos entrega “Anos de Chumbo e Outros Contos”.

São oito histórias de um tempo sem delicadeza. Não há palavras desnecessárias nesses contos tirados dos cantos desta cabeça que ensolara a cultura brasileira desde meados dos anos 60 do século passado.

A propósito, Chico tem guardado nos desvãos de seu acervo o conto ‘Ulysses’, publicado no Suplemento Literário do ‘Estadão’ ainda antes da ‘Banda’ sair às ruas cantando coisas de amor.

Quase seis décadas separam o aprendiz do mestre. Chico segue sua jornada. Mesmo que microfones continuem sendo cortados, versos riscados e passaportes jogados ao lixo. Com fino humor e o seu jeito moleque, ele vai levando. Dando a cara a tapa sem paúra do tira que da sinistra rosnar.

Mas Chico é um fingidor. Daqueles que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sente. Por isso não dará entrevistas, como é de sua inusitada coerência. Jamais saberemos como nasceram cada conto. Até que ponto o narrador conta histórias vividas ou vive histórias inventadas são enigmas que o autor deixa por conta de cada leitor.

Época de vastas emoções e pensamentos imperfeitos, Chico reparte seu copo de cólera com quantos queiram, junto com ele, desnudar esses tempos ásperos.

Mas Chico dá um drible da vaca em leituras apressadas. Os contos não são datados. Embora escritos em uma reclusão compulsória causada pela pandemia, vão além de um mero mergulho no tempo presente.

“Meu Tio”, “Os Primos de Campos” e “Anos de Chumbo” são esboços de longos romances sobre um país que foi gradativamente perdendo a delicadeza .

Bastava ampliar o perfil psicológico dos personagens, como diriam acadêmicos críticos, ou esmiuçar os contextos históricos. Mas Chico preferiu a concisão. “O Passaporte” e “Para Clarice Lispector Com Candura” resvalam em testemunhos pessoais. Já em “Sítio”, “Cida” e “Copacabana” misturam-se os fatos, mulheres, sonhos e a imaginação rola solta.

Mas Chico é um escritor. Não é um cantor, um sambista, um ativista ou arrivista que invade terrenos alheios. Embora ainda existam os que insistam em diminuir o já ilimitado espaço que ele conqusitou na literatura portuguesa.

Difícil argumentar sobre o novo livro sem cair na tentação do spoiler. É uma obra que indigna e revolta, mas sobretudo encanta e dá prazer. Seja para os viciados em leituras ou para os que com esses contos curtam suas primeiras viagens.

Nesses tempos de analfabetismo literário, quando portar um livro pode parecer uma provocação com os milhões que lutam nas ruas por um osso, quem se der ao requinte de ler e reler os contos se verá dentro do caleidoscópio buarqueano.

Como no desenho mágico de suas letras de música, a cada leitura novas descobertas se descortinam com frases que mesmo tiradas do contexto possuem vidas próprias.

Requintes de um Messi que faz das bolas/palavras o que bem quer. Camões é prêmio do passado. O Nobel vem aí para enlouquecer os que, mais do que um passaporte, desejariam dar um fim no odiado grande artista.

*João Tavares é jornalista eventual e pai da Clara e do João Vinícius em tempo integral

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