Chico e seu poema perfeccionista em Januária

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Por Antônio Oswaldo (Tuninho) – advogado, fã ardoroso de Chico Buarque desde criancinha

Amigo do Bem Blogado, o Tuninho mergulha na música Januária, de Chico Buarque, para constatar a sua, do Chico, genialidade. Pois, com diz o Tuninho no texto abaixo, “há mais tesouros poéticos nos versos de Chico do que enxerga a nossa vã e desatenta leitura!”




Vamos ao texto que inaugura os muito que virão em homenagem ao oitentão (rimou).

“Salve Junho, mês do Chico Buarque! No dia 19, Chico completa 80 anos! Orgulho do Brasil. Feliz aniversário.

Em 1966, A BANDA se tornava uma febre no Brasil. Por uma dessas coincidências mágicas da vida, naquele mesmo ano um menino estava tendo aulas de Versificação no ginásio. E isso ajudou-o tão precocemente a compreender a grandeza de Chico.

Esse menino era eu.

A seguir, em homenagem ao maior compositor popular de nossa História, uma análise de minha autoria, sob a ótica da Versificação, dos belos versos de uma obra-prima do Chico: JANUÁRIA. Como sei que a maioria não é iniciada em Versificação, a análise será bem didática.

JANUÁRIA

Toda gente homenageia

Januária na janela

Até o mar faz maré cheia

Pra chegar mais perto dela

O pessoal desce na areia

E batuca por aquela

Que malvada se penteia

E não escuta quem apela

Quem madruga sempre encontra

Januária na janela

Mesmo o sol quando desponta

Logo aponta os lados dela

Ela faz que não dá conta

De sua graça tão singela

O pessoal se desaponta

Vai pro mar, levanta vela

Eu costumo dizer que ler os versos de Chico uma só vez ou desatentamente é pecado mortal sem direito à absolvição! Porque uma leitura açodada priva-nos de captar todos os recursos poéticos empregados e toda a beleza de sua poesia!

Portanto, esqueçamos a bela melodia bossanovista, e vamos aos versos, já que esse que vos escreve não é músico, mas um aficionado, um apaixonado por poesia. E falar de Chico Buarque é falar de poesia!

Assim, todos os versos de JANUÁRIA, do primeiro ao último, são rigorosos heptassílabos (versos de 7 sílabas), também denominados redondilhas maiores. A redondilha maior é o verso rígido mais difundido na língua portuguesa e também na língua espanhola. A pausa pode ocorrer desde a primeira sílaba até a quinta, menos na sexta.

Os versos de JANUÁRIA estão distribuídos em 4 estrofes de 4 versos em cada uma, totalizando 16 versos. A estrofe é o parágrafo da poesia rígida, assim como a sílaba poética é a sílaba do poema que difere da sílaba gramatical: na sílaba poética guiamo-nos pelo som, na sílaba gramatical pela grafia. A princípio, pode não parecer simples, mas é simples, sim. Vejamos o primeiro verso do poema, que é o primeiro verso da primeira estrofe:

To-1/da-2/ gen-3/te+ho-4/ me-5/na-6/gei-7/a

Não, não é uma equação ou uma mensagem cifrada! Reparem que a sílaba poética 4 é formada pela junção do “te” com o “ho”, que são pronunciados como uma única sílaba. Declame em voz alta e perceba que você faz a junção naturalmente. Detalhe importante: a contagem termina na última sílaba tônica, desprezando-se a última sílaba gramatical, quando houver. No exemplo acima, a contagem termina na sílaba “gei” (sétima sílaba), desprezando-se a sílaba “a”.

Você vai notar, ainda, o quão perfeccionista Chico é: em todos os 16 versos do poema todas as pausas ocorrem na terceira sílaba poética. Leia em voz alta e perceba que você faz uma breve pausa na terceira sílaba poética de qualquer dos versos. Frisamos que num poema não se fala em frase, fala-se em “verso”. Cada frase de um poema chama-se “verso”.

Assim, em Januária, quando lemos “Toda gente homenageia”, isso não é uma frase, é um “verso”, é o primeiro verso do “poema”. Poema, sim! Porque a letra de Januária é um belíssimo poema, a despeito da primorosa melodia bossanovista.

No “poema”, Chico cria uma aldeia praieira com elementos de fábula, uma fábula singela e brasileiríssima. Naquela aldeia encantada, tudo gira em torno de Januária: os pescadores, o mar e o sol, todos reverenciam a bela aldeã na janela.

Os pescadores reverenciam: “O pessoal desce na areia /E batuca por aquela /Que malvada se penteia / E não escuta quem apela”; o mar reverencia: “Até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela”; o sol reverencia: “Mesmo o sol quando desponta / Logo aponta os lados dela“.

Resta, ainda, analisar as rimas. Um perfeccionista como Chico não deixaria por menos: esculpe belíssimas rimas ricas e até mesmo uma rima interna incidental. O que são rimas ricas? São aquelas obtidas entre palavras de classes gramaticais diferentes, o que as torna mais difíceis. Basta reparar: homenageia e cheia (verbo flexionado e adjetivo); janela e dela (substantivo concreto e contração de preposição com pronome); aquela e apela (pronome e verbo flexionado). E, de quebra, uma rima “interna” incidental, que ocorre entre a palavra final de um verso e uma palavra localizada no interior do verso seguinte:

“Mesmo o sol quando DESPONTA

Logo APONTA os lábios dela”…

Por fim, restaria também exaltar mais uma virtude do Chico poeta: ele é um mestre da ‘aliteração’. E o que é ‘aliteração’? Eu definiria como “o ato de aproximar palavras de fonemas idênticos ou semelhantes de modo a produzir sons que sugerem um fenômeno da natureza ou de um objeto qualquer”. Exemplo clássico, tão citado no ginásio, foi-nos dado por Machado, quando estudamos Versificação: “zumbia as asas azuis”. Note-se que se pronunciamos em voz alta, sentimos o zumbido do inseto voador, graças às palavras que encadeiam o fonema “zê”, como queria o Bruxo do Cosme Velho (sim! Ele também poetava!)

Agora que sabemos o que é aliteração, vamos “declamar” toda a primeira estrofe de JANUÁRIA:

Toda gente homenageia

Januária na janela

Até o mar faz maré cheia

Pra chegar mais perto dela

Se declamamos os quatro versos, observamos a profusão dos fonemas “chê” e “gê”, que nos induz a “escutar” o murmúrio das águas do mar, que também vem reverenciar JANUÁRIA. É simplesmente brilhante!

E por aí vai o grande poeta! Ao longo desse junho dos 80 anos de nosso maior compositor popular, pretendo analisar versos de outras canções do gênio.

Há mais tesouros poéticos nos versos de Chico do que enxerga a nossa vã e desatenta leitura!

Um viva aos 80 anos de Chico!”

Ouçam Januária

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