Chile, 50 anos do golpe: Ex-exilados brasileiros preparam viagem para 11 de setembro

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No dia 11 de setembro, cerca de 100 ex-exilados brasileiros retornarão a Santiago para cumprir uma agenda política de resgate dessa memória histórica

Por Tatiana Carlotti, compartilhado de Jornal GGN




A escritora e educadora Cristina Oliveira e o jornalista Paulo Santiago, ex-militantes do Partido Operário Comunista (POC), não se encontravam presencialmente há 50 anos. Durante o exílio no Chile, ela o acolheu em sua casa e nunca se esqueceu do ânimo do “Luís” e da ajuda dele para cuidar do seu primeiro filho, acometido por uma infecção violenta, ainda bebê, no país vizinho. “Ele ajudou Caetano, ajudou meu ex-marido, meu irmão. É a coisa mais bonita esse reencontro”.

Um reencontro entre vários outros que aconteceram no último dia 18 de agosto, no bota-fora da caravana Vila Chile! 50 anos, realizado no Bar Canto Madalena, em São Paulo, com a presença de ex-militantes de diferentes organizações da resistência à ditadura militar (1964-1985) no Brasil.

Composta por cerca de 100 brasileiros forçados ao exílio no Chile, a caravana regressará agora a Santiago e muitos participantes estão retornando pela primeira vez ao país após meio século do golpe que derrubou o governo socialista de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973.

“Nós éramos uma comunidade importante de brasileiros no Chile, ninguém sabe direito por que não houve cadastramento, mas se fala em 2.500 a 4.000 brasileiros refugiados. Era dessa ordem, aí veio o golpe e nós viramos o diabo”, conta o sociólogo Ricardo Azevedo (ex-militante da AP – Ação Popular). Meses atrás, ele telefonou para o colega dos tempos de militância, o professor aposentado de Matemática, William Martani, para pensarem o que fazer nos 50 anos do golpe chileno.

O que seria uma viagem entre amigos – a princípio, a ideia era levar apenas uma faixa agradecendo ao povo chileno e homenageando o governo Allende – acabou se transformando em uma agenda política destinada a marcar a presença e a história dos brasileiros exilados no Chile. Além disso, a partir do grupo de WhatsApp, a caravana Viva Chile! vem promovendo a conexão e a reconexão de várias pessoas e histórias vinculadas às experiências da luta e exílio. Muitas inclusive estão se conhecendo pessoalmente agora, 50 anos depois.

DA IDEIA À AÇAO

Essa lista, criada inicialmente como um pequeno grupo de cinco pessoas, foi crescendo. E começaram a surgir uma série de propostas. A primeira foi o lançamento de um manifesto de reconhecimento da solidariedade do povo chileno e da volta da democracia. “Aqui, nós havíamos acabado de nos livrar do inominável e de eleger Lula. E no Chile, o neoliberalismo foi muito pesado. Tudo foi privatizado (saúde, educação etc). A partir da ditadura do general Pinochet, eles implementaram um ´neoliberalismo raiz´ no Chile. Até hoje, eles não têm educação pública, saúde pública. Tudo você precisa pagar. A eleição do [presidente Gabriel] Boric trouxe uma perspectiva de mudança. Foi assim que surgiu a caravana”.

A viagem prevê a inauguração de duas placas: uma na embaixada do Brasil no Chile e outra na Praça Brasil, em Santiago, homenageando os seis brasileiros assassinados pelo golpe e ditadura de Pinochet. “Não esqueceremos”, diz o texto, e na sequência os nomes de Luiz Carlos de Almeida, Wânio José de Matos, Túlio Quintiliano Cardoso, Jane Vanini e Nelson de Souza Khol. Também ficará registrado na embaixada brasileira que, em 1973, muitos foram presos e torturados pelas forças golpistas, com a participação de agentes da repressão brasileira no Brasil e no Chile.

William Martani, um dos organizadores da caravana no Bar Canto Madalena (Foto: Paulo Santiago)

“O governo brasileiro participou ativamente do golpe, o embaixador brasileiro no país, Câmara Canto, era amigo de Pinochet e odiava os exilados brasileiros que estavam lá”, destaca Martani. Com a proposta em mãos, eles procuraram o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) e o Itamaraty, ganhando a adesão do embaixador brasileiro no Chile, Paulo Roberto Soares Pacheco. “Nós redigimos a placa e o Itamaraty mandou fazê-la. Uma das atividades da caravana será a inauguração dessas placas”.

Duas outras atividades estão sendo organizadas. A doação ao Museu de la Memoria y Derechos Humanos do Chile, de objetos, como um bordado a partir da arte de Claudius Ceccon (ver imagem final), o “anel azul” entregue por um militante chileno a caminho da tortura, e a doação ao museu do documentário “15 Filhos”, de Marta Nehring e Maria Oliveira, sobre a história dos filhos dos exilados políticos brasileiros.

Outra ação é a substituição do nome de uma rua que foi atribuída ao então embaixador brasileiro na época do golpe, pelo nome do Dr. Otto, o pediatra que salvou Caetano, filho de Cristina e os filhos de tantas outras mães no exílio. A rua, destaca Martani, fica no bairro de La Victoria no Chile, “onde houve a primeira ocupação de terra urbana na América Latina”. A proposta sobrequal será o novo nome da rua ainda está em votação na subprefeitura chilena, mas a substituição do nome do colaborador da ditadura, já é certa.

ANTECEDENTES DO GOLPE

Durante os dois anos e meio que passou no Chile, Cristina tentou ser o mais chilena possível, até por uma questão de segurança. “Eu rapidamente comecei a falar o chileno popular, eu não ficava muito grudada com os brasileiros, ia muito nas comunidades. Nós trocávamos receitas, íamos nas filas pegar sopa de madrugada. Quando meu filho ficou doente, as vizinhas me levavam pote de açúcar. Eu sempre me senti uma mãe chilena”.

Meses antes do golpe, porém, a vida passou a ficar insuportável para os brasileiros. “Nós ficamos numa situação de muita luta. Passando fome mesmo e a situação foi se agravando, principalmente, para quem tinha criança pequena. Em 1973, houve um completo bloqueio de tudo. Eu saí um mês antes convicta – e a nossa organização também estava – de que teríamos um golpe. Dali, eu fui para a Argentina”, detalha.

Enquanto isso, no Sul do Chile, Renato Dagnino, então militante do chileno Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), trabalhava como engenheiro numa petroquímica chilena e assistia às aulas de Ciências Sociais e Economia da Universidad de Concepción, conhecida como La Universidad Roja das Américas. “Ali eu tive toda a minha fundamentação teórica de esquerda. Nossos professores eram cubanos, haviam estudado na URSS, na Polônia socialista. Nós aprendíamos basicamente como construir o estado socialista a partir do estado capitalista. Buscávamos nos fortalecer nesse sentido”.

Professor de Ciência e Tecnologia na Unicamp, ele conta ter ouvido o golpe pelo rádio. “Todo mundo sabia que haveria um golpe, várias tentativas já tinham ocorrido e o Allende sempre conseguia dar um jeito nas Forças Armadas. Nós não estávamos preparados para enfrentar um golpe como aquele, de jeito nenhum”, avalia.

Para o jornalista Paulo Santiago de Augustinis, militante do POC Combate, “a volta para o Chile é uma volta na História. São 50 anos e muitas vidas que participaram daquele momento, muitas memórias a se resgatar. O Chile representou um porto seguro para todos nós, até o golpe de Pinochet”.

Mari Brasil, Cristina Oliveira e Paulo Santiago de Augustinis durante o reencontro no Bar Canto Madalena, em São Paulo. Ao fundo à dir., Vera Soares. (Foto: Paulo Santiago)

No Chile, Paulo atuou na Operación Santamontes da Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo da Unidade Popular. Depois do golpe, ele foi para a Argentina, onde militou no Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP) da Argentina. Em 1981, já no Brasil, ele fundou com Armandinho Publisi, o Museu do Bixiga. Da experiência de governo, destaca que “trabalhar no governo Allende foi ter contato com uma verdadeira legião estrangeira do bem. Era gente do mundo inteiro, uruguaios, paraguaios, colombianos, mexicanos, argentinos. Uma de experiências muito grande”.

Enquanto isso, Plinio de Arruda Sampaio Jr., no Chile desde 1965, avançava da 5ª a 8ª série, tendo como colega de turma o filho do general Augusto Pinochet. Ele recorda, após a ascensão de Pinochet no comando da Escola Superior de Guerra, de ter dito ao colega, algo como “teu pai ainda termina presidente”. A reação foi superlativa: “você está debochando dos militares e das nossas instituições? Não aceito essa brincadeira”. “Dois meninos reproduzindo em sala o que ouviam em casa, mas quatro anos depois, o pai dele dava um golpe”, avalia o economista que saiu do Brasil, com seu pai Plínio de Arruda Sampaio, já na primeira leva de exilados políticos, logo após o golpe de 1964.

O DIA D

“Eu estava lá no momento do golpe. Foi muito impressionante porque eu morava a três quadras do Palacio de la Moneda. Então, eu vi os aviões passando pela minha janela e depois o bombardeio da sede do governo”, conta a historiadora Ângela Mendes de Almeida, militante à época do POC. “Para mim foi muito impressionante, porque nós nunca tínhamos visto um golpe. O golpe no Brasil não deu para ver, foi um golpe de gabinetes, sem resistência. Imediatamente, aconteceram as prisões, mas não teve combate. No Chile não”, compara.

Ela conta que, em seguida, “a Junta Militar do Chile soltou um decreto dizendo que, a princípio, todos os estrangeiros eram suspeitos”. Em meio à confusão, incluindo tiroteio nas ruas, os brasileiros buscaram abrigo nas embaixadas próximas. Ela encontrou refúgio na embaixada do Panamá, que “era muito pequena”, um apartamento com três quartos pequenos abrigando centenas de pessoas. “De noite um grupo dormia e a gente alternava”.  

“Dali fomos transferidos para uma casa maior, doada para a embaixada do Panamá pelos intelectuais Theotônio dos Santos e Vania Bambirra. Nós passamos dois meses nessa casa, até obter asilo na embaixada cubana. Éramos 300 pessoas numa casa e havia um quarto só com pessoas doentes. Eu lembro que as crianças e as grávidas acabaram sendo retiradas pela Cruz Vermelha. A casa acabou sendo transformada em centro de tortura pelos militares, hoje é um museu de resistência.

Fachada da casa do sociólogo brasileiro Theotônio dos Santos, doada para a embaixada do Panamá
e depois transformada pela ditadura em centro de detenção e tortura no final de julho de 1974.

Assim como a Ângela, Mila Frati assistiu ao bombardeio de perto. Filha de Rolando Frati, um dos fundadores da Ação Liberadora Nacional (ALN), exilado no Chile desde 1971, Mila cursava o ginásio em uma escola muito próxima do La Moneda. “Meu pai estava numa casa, a minha mãe em outra e eu estava distraída indo para a escola quando passaram os aviões e começou o bombardeio. Eu vi aquilo e fui para a casa de uma família de brasileiros, cujos filhos eram amigos meus. Ali, com eles, eu passei aquele momento. Nos dias subsequentes, nós tentamos entrar em várias embaixadas, mas não conseguíamos”.

Finalmente, nós ficamos sabendo que a embaixada do Panamá ainda estava aberta e corremos para lá. “Por acaso, eu encontrei a minha mãe nessa mesma embaixada. Nós entramos e ela estava lá, foi uma surpresa imensa.  Meu pai, eu só o encontraria em 1974. Ele entrou fantasiado de diplomata na Itália e nós seguimos para o Panamá, depois fomos para a Bélgica onde precisamos esperar oito meses até conseguir entrar na Itália. Ali nós nos reencontramos, meu pai, minha mãe, meus irmãos e eu”.

Para Mila, que era muito criança na época, “a experiência da caravana está sendo incrível”. Ela conta que a proposta vem sendo muito bem recebida pelo embaixador chileno no Brasil, e também pela embaixada brasileira em Santiago, contrariamente ao que se viu no período da ditadura, “quando eles simplesmente deram as costas para quase quatro mil brasileiros no Chile. E não se trata de um dado exato, muita gente clandestina não foi contabilizada”, acrescenta.

REENCONTROS

William Martani também se abrigou no pequeno apartamento da embaixada do Panamá, e na residência doada pelo casal de intelectuais marxistas “que ajudaram a construir, com Ruy Mauro Marini a teoria marxista da dependência”, frisa. Apesar de não serem ricos, o casal tinha recebido uma herança e comprado uma casa de mil metros quadrados, com cinco (ou seis) quartos e uma piscina que seria transformada em dormitório. “Quando a ONU esteve na embaixada e constatou que haveria uma crise sanitária, eles começaram a buscar uma alternativa ao apartamento, então, os dois ofereceram a casa”, detalha.

Martani conta que o traslado de um ponto ao outro foi cinematográfico. “A gente tinha medo de ser preso na hora de sair do apartamento, a ditadura tinha medo de haver um atentado e havia a intervenção da ONU. Nós saímos dali de braços dados com o embaixador panamenho, um por um, porque estando com o embaixador ninguém podia se preso. Ele colocou uma bandeira do Panamá no ônibus, para o ônibus virar território panamenho, e a ONU mandou gente para fiscalizar o traslado que demorou horas”, lembra.

Um dos principais objetivos da caravana é dar visibilidade a essa(s) história(s).

“Nós vivemos um período de acolhimento durante o governo Allende. Com o golpe, o estrangeiro virou o responsável por todos os males que aconteciam. Era a propaganda que a direita chilena fazia. No rádio, os militares incentivavam as pessoas a denunciarem qualquer ameaça. Havia a diretiva de que todo estrangeiro tinha que se apresentar na delegacia de polícia mais próxima. De repente, nós viramos o diabo”, sintetiza Azevedo, que após ser denunciado por uma vizinha foi preso e levado ao Estádio Nacional do Chile, transformado em um centro de tortura e prisão.

Ricardo Azevedo no Bar Canto Madalena, local do encontro, momentos antes de começar o “bota-fora” em São Paulo. (Foto: Paulo Santiago)

“Eu não tive coragem de voltar ao Estádio Nacional, onde fiquei pouquíssimos minutos. E não sei se vou agora. Há uma dimensão emocional muito forte. Eu vou reencontrar gente que não vejo há 50 anos, pessoas que foram companheiras. Agora mesmo, acabei de rever o Ismael Antonio de Souza, que lutou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um cara marcante”, exemplifica.

Engajado na luta pela recuperação e preservação dessa memória, que será recontada ao longo do percurso da caravana Viva Chile!, Azevedo dá uma palhinha (ainda que breve) sobre a experiência socialista do governo Allende.

“Um governo sui generis na América Latina. Não era como a Cuba revolucionária, não era um governo populista como o peronismo ou o varguismo. Era muito mais que isso. Era realmente uma proposta de transformação social rumo ao socialismo, só que pela via democrática, do voto, em vez de ser pela luta armada. Nós vimos isso acontecer. Em pouco tempo, o governo Allende fez transformações profundas na sociedade chilena. A área de propriedade estatal chegou a 72% da economia, e também tinha o setor privado e o setor da pequena propriedade. Nunca houve nada parecido”.

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