Por André Campos e João Cesar Diaz, compartilhado de Repórter Brasil –
Trabalhadores em péssimas acomodações, sem acesso a banheiro ou água potável e recebendo salários que não alcançam a metade do mínimo. A triste realidade da produção de cacau no Brasil que beneficia as gigantes do agronegócio
Duas multinacionais do setor cacaueiro compraram amêndoas de um fornecedor abastecido com o uso de mão de obra análoga à escravidão na Bahia. Investigações do Ministério Público do Trabalho (MPT) obtidas pela Repórter Brasil revelam uma série de violações trabalhistas na rede de fornecedores das companhias Olam International e Barry Callebaut. Uma terceira gigante do agronegócio também se beneficiou do “cacau sujo”: a Cargill.
As três empresas estrangeiras são responsáveis por 97% da moagem e torra das amêndoas no Brasil e fornecem para as principais marcas de chocolate, como Nestlé e Lacta (Mondelez) – fabricantes dos famosos bombons “chokito” e “sonho de valsa”. Mas antes de se tornar uma guloseima na mão dos consumidores, o cacau brasileiro vive uma triste realidade no campo.
A menos 148 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo em fazendas de cacau nos últimos 15 anos. Boa parte das operações ocorreram no Pará e na Bahia, os maiores polos nacionais. As violações aos direitos humanos incluem também ameaças de patrões, condições degradantes de moradia e higiene, servidão por dívidas e até trabalho infantil.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, as duas figuras centrais nessa cadeia de crimes são os donos das fazendas e os chamados “atravessadores” – intermediários que fazem a ponte entre os fazendeiros e as grandes empresas de moagem.
Uma das fazendas flagradas com trabalho escravo pertence à empresa Chaves Agrícola e Pastoril, dona de diversas propriedades cacaueiras no sul da Bahia. Em setembro de 2017, auditores fiscais do trabalho, do Ministério da Economia, resgataram nove pessoas em situação análoga à de escravos na Fazenda Diana, em Uruçuca (BA).
De acordo com os auditores-fiscais, a fazenda mantinha os trabalhadores em péssimas acomodações e sem acesso a banheiro ou a água potável. Os lavradores tomavam banho em uma lagoa de águas turvas e paradas. Para beber e cozinhar, tinham de “coar” a água coletada em cacimbas para remover girinos e peixes.
De acordo com o apurado pelo MPT à época da fiscalização, o cacau colhido pelo grupo Chaves era negociado com diferentes atravessadores nos municípios onde a empresa possuía fazendas. A Repórter Brasil teve acesso a notas fiscais sobre os negócios destes intermediários. Os documentos confirmam que, à época do resgate, ao menos duas grandes multinacionais moageiras – Barry Callebaut e Olam Agrícola – figuravam entre os compradores de cacau de um atravessador abastecido por fazendas do grupo Chaves.
Procurada, a Barry Callebaut informou que o seu relacionamento com a Chaves Agrícola e Pastoril foi interrompido em junho de 2019, após a descoberta de violações ao seu código de conduta para fornecedores.
A Olam Agrícola, por sua vez, não comentou o uso de mão de obra escrava na sua cadeia de fornecedores nem disse se tomou providências a respeito do grupo Chaves. Declarou, no entanto, possuir sistemas de monitoramento para proteger os direitos humanos.
A Mondelez, dona da Lacta, reconheceu a dificuldade de se estabelecer boas condições de trabalho nas lavouras. Já a Nestlé afirmou que compra o cacau diretamente das empresas de moagem. As duas fabricantes de chocolate dizem repudiar as más práticas trabalhistas.
Em 2018, apenas alguns meses após o flagrante, a Fazenda Diana e outras fazendas do grupo Chaves receberam o selo de boas práticas da UTZ, principal certificadora internacional de sustentabilidade trabalhista e ambiental do setor. O certificado, contudo, não está mais válido. Questionada sobre a data e os motivos do desligamento, a UTZ não respondeu (veja o posicionamento completo das empresas).
Por conta do flagrante, a Chaves Agrícola e Pastoril foi incluída, em abril de 2020, na “lista suja” do trabalho escravo, cadastro oficial do Ministério da Economia que expõe empregadores flagrados utilizando mão de obra em condições análogas à escravidão. Antes de entrar na lista, empregadores se defendem em duas instâncias administrativas na Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do ministério.
Esta não foi a primeira vez que a empresa enfrentou denúncias trabalhistas. Em 2016, o MPT obteve na Justiça o bloqueio de contas do grupo Chaves após 120 trabalhadores serem mantidos em condições degradantes de moradia em suas fazendas. Representantes do grupo foram procurados por telefone e e-mail, mas não atenderam a reportagem.
Remuneração abaixo do mínimo
Uma outra fiscalização no sul da Bahia flagrou, em dezembro de 2018, violações trabalhistas que alcançavam mais uma vez as grandes indústrias do setor. Auditores federais e o MPT encontraram trabalhadores vivendo nas fazendas Boa União e Sete Voltas sem acesso a banheiro ou água tratada. Lavradores relataram que recebiam rendimentos inferiores à metade do salário mínimo.
O cacau colhido nas duas propriedades, segundo o MPT, era negociado com um mesmo atravessador. Em depoimento ao órgão, o intermediário afirmou que comercializava o produto para Barry Callebaut, Cargill e Olam.
A Repórter Brasil não conseguiu localizar os proprietários das fazendas Boa União e Sete Voltas. Já a Cargill informou que, desde 2019, não adquire mais cacau do intermediário em questão. A multinacional informou que quer aumentar as compras de cacau diretamente nas fazendas, que representam hoje apenas 20% do volume adquirido. “Nos últimos dois anos, a Cargill abriu mais quatro armazéns espalhados pelo Brasil com o objetivo de ampliar as compras diretas”, diz a empresa (ver a resposta na íntegra).
Questionada, a Barry Callebaut não quis comentar o caso, alegando que não divulga informações sobre os seus fornecedores. A Olam também não se manifestou.
Parceiros?
Assim como no caso da Fazenda Diana, os trabalhadores dessas duas propriedades também conseguiram o serviço por meio dos chamados “contratos de parceria”. São arranjos previstos em lei nos quais o dono da propriedade fornece um lote de terra para o lavrador – chamado de “parceiro” – manejar os pés de cacau ao longo do ano. Ele não tem direito a salário, mas, ao fim da safra, fica com um percentual do cacau colhido sob seus cuidados – geralmente 50% ou menos.
Porém, a legislação prevê também que o dono da terra é obrigado a garantir condições mínimas de moradia e infraestrutura ao “parceiro”, além de autonomia nas negociações – mas muitas vezes isso não acontece. Em alguns casos, o fazendeiro impõe ao lavrador para quem ele deve vender o cacau. Com pouca margem de negociação, os lucros do arranjo não alcançam uma remuneração digna e adequada à subsistência.
Praticamente toda a produção de cacau na Bahia é feita por meio desses contratos, o que leva às violações trabalhistas no setor, explica o procurador do MPT Ilan Fonseca de Souza. “A parceria esconde o vínculo empregatício. O fazendeiro consegue sua produção sem ter de contratar ninguém”, afirma o procurador. É por isso que a fiscalização classifica muitos contratos como fraudulentos – feitos para mascarar uma relação que, na verdade, é a de patrão e empregado.
Para frear as violações nas lavouras de cacau, Souza defende a responsabilização das gigantes do setor, já que a aquisição do produto abastece um mercado extremamente concentrado. Essa possibilidade, no entanto, esbarra na dificuldade para rastrear a origem das amêndoas. Por meio de contratos informais, os atravessadores juntam sacas de diversas fazendas a fim de revender o produto em volume maior para as beneficiadoras.
Das três multinacionais que negociaram com os atravessadores envolvidos em violações trabalhistas, apenas a Barry Callebaut comentou a dificuldade de rastrear a origem das amêndoas. A empresa promete certificar seus intermediários, mas o sistema não está pronto e não há prazo para entrar em funcionamento.